1º Comentário ao Acórdão de 06 de junho de 2004, processo nº 0202/23.1BALSB do STA - Rodrigo Melo da Silva
Desta análise surge a densificação teórica do Princípio do Inquisitório, tal como a sua aplicação concreta num caso apreciado pelo STA.
I - Introdução
O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06 de junho de 2024, processo nº 0202/23.1BALSB, proferido em conferência pela Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, tem como objeto a impugnação judicial do Acórdão da Secção de Apreciação do Mérito Profissional, proposta por uma magistrada do Ministério Público, contra a referida decisão do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP).
A magistrada contestou a classificação de "suficiente" que lhe fora atribuída, em relação ao seu desempenho no período compreendido entre 1 de setembro de 2017 e 16 de março de 2022, constante do acórdão da Secção de Apreciação do Mérito Profissional do CSMP e mantida pelo respetivo Plenário.
A Autora, fundamenta o seu pedido de impugnação destes atos com base em vários vícios, nomeadamente violação de lei e aplicação de norma regulamentar ilegal, quebra dos princípios da imparcialidade, isenção e transparência, desrespeito pelas normas do Estatuto do Ministério Público (EMP) e do Regulamento n.º 13/2020, ofensa ao princípio do inquisitório, insuficiência de fundamentação e erro nos pressupostos de facto e de direito.
O Supremo Tribunal Administrativo começou por reconhecer a verificação dos pressupostos processuais indispensáveis ao conhecimento do mérito da causa. Assim, declarou-se competente para a apreciação do litígio, atento o autor dos atos impugnados – o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) – e reconheceu-se, igualmente, a personalidade e capacidade judiciárias das partes, a sua legitimidade e a respetiva representação em juízo, não se verificando quaisquer nulidades processuais que obstassem à apreciação do mérito.
II - Fundamentação de facto
A Autora é magistrada do Ministério Público, com a categoria de Procuradora da República, tendo anteriormente a designação de Procuradora-Adjunta. Foi classificada com "Bom" e, posteriormente, com "Bom com Distinção" pelos serviços prestados em anteriores comarcas.
Em maio de 2021 foi publicado o mapa de inspeções e, em março de 2022, iniciou-se a inspeção ao seu desempenho entre 16/3/2017 e 16/3/2022. Contudo, o período até 31/8/2017 não foi considerado, por força do artigo 7.º, n.º 3, do Regulamento n.º 13/2020. Em dezembro de 2022, a Inspetora propôs a classificação de "Suficiente", alegando desempenho meramente satisfatório, com alguma regressão em relação à anterior inspeção.
A Autora, em janeiro de 2023, pronunciou-se no sentido de merecer a nota de "Bom com Distinção", invocando, entre outros aspetos, o trabalho desenvolvido na jurisdição criminal.
A Inspetora manteve a sua posição, considerando que o desempenho da Autora não transcende o exercício normal das funções. Em data posterior, a Secção competente do CSMP acolheu, por unanimidade, a proposta da Inspetora, atribuindo à Autora a classificação de "Suficiente".
III - Fundamentação de direito
A impugnação tem sempre por finalidade a destruição de um ato administrativo, e, neste caso, tratando-se de impugnação judicial, o objetivo é conseguir uma decisão do tribunal que anule ou declare a nulidade ou a inexistência jurídica do ato em causa, por este se apresentar desconforme com as regras e princípios que decorrem da lei.(1)
Deste presente Acórdão, ser-nos-á útil somente a alegada violação do inquisitório, a qual será objeto de análise.
A Autora alegou que o princípio do inquisitório teria sido violado, por não terem sido devidamente ponderados alguns factos e provas que apresentou, nomeadamente:
A prestação de serviço em contexto de pandemia;
E a alegada falta de análise de todos os processos dos Juízos Centrais Criminais que indicou.
Contudo, o acórdão rejeita essa alegação, referindo que:
Quanto ao contexto pandémico, essa matéria foi expressamente considerada tanto no Relatório da Inspeção como na Informação Final da inspetora, além de também ter sido tida em conta no próprio acórdão do CSMP. Portanto, foi devidamente ponderada.
Relativamente à análise dos processos indicados pela Autora, a inspetora esclareceu que esses processos foram efetivamente considerados:
A inspeção recorreu tanto à consulta eletrónica como à consulta física dos autos (essencial, já que nem todos os elementos constam do sistema Citius);
Foram analisados não só os processos indicados pela inspeção, como também os sugeridos pela própria Autora;
Vários desses processos constam expressamente no relatório final da inspeção, com menções detalhadas à sua complexidade, ao desempenho da magistrada e à audição de registos áudio;
O desempenho da Autora nestes processos foi avaliado e destacado nas páginas 20, 22 e 25 do relatório.
Além disso, o próprio acórdão do CSMP (nos pontos 179 a 186) também refletiu estas mesmas considerações, o que demonstra que o princípio do inquisitório foi respeitado.
Conclusão do acórdão: Não houve qualquer omissão na consideração dos elementos relevantes para a avaliação da Autora. Por isso, improcedem as alegações de violação do princípio do inquisitório.
A questão do princípio do inquisitório surge no âmbito da alegada insuficiência instrutória por parte da entidade inspetiva e do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), em sede de avaliação do desempenho de uma magistrada.
A Autora invoca uma suposta violação do princípio do inquisitório, sustentando que não foram devidamente considerados todos os factos e meios de prova por si apresentados durante o exercício do seu direito de audiência, designadamente a prestação de serviço em contexto de pandemia e a falta de valoração de diversos processos judiciais complexos por si indicados.
De acordo com Vieira de Andrade (2), este princípio vale logo na aquisição dos factos necessários para a decisão. Dado o processo administrativo ser, sobretudo, objetivista, nos casos de impugnação de atos e normas o princípio do inquisitório (da investigação ou da verdade material) é de extrema importância.
A procura da verdade material pelo juiz tem como fronteira o âmbito do processo, determinado pelo pedido e pela causa de pedir. O problema que surge é que nem sempre é fácil de saber se estamos perante elementos da causa de pedir ou perante elementos probatórios, já que as diligências a ordenar pelo juiz têm como propósito provar os factos que são invocados como fundamentos do pedido.
No caso em apreço, a Autora sustentava que a entidade inspetiva e o CSMP não teriam cumprido o dever de investigar oficiosamente todos os factos e meios de prova relevantes, em especial no que respeita à consideração do contexto pandémico e à análise de processos judiciais concretos por si indicados. Esta invocação do princípio do inquisitório pretende, assim, imputar uma falha no apuramento da "verdade material" no seio do procedimento avaliativo.
Contudo, como esclarece o acórdão, os elementos fácticos invocados pela Autora não foram desconsiderados, tendo sido objeto de ponderação explícita tanto no relatório da inspeção como na decisão final do CSMP. Verifica-se, assim, que o procedimento respeitou os contornos do princípio do inquisitório, tal como entendido na tradição processual portuguesa: a iniciativa instrutória caberá ao julgador (ou, neste caso, à entidade inspetiva), mas sempre dentro do âmbito delimitado pelos termos do processo — isto é, pelo pedido de avaliação e pelos seus fundamentos fáctico-jurídicos.
Ainda Vieira de Andrade nos diz que, no que respeita a processos de impugnação de atos, são de entender de modo mais largo os poderes conferidos ao julgador, com maior relevância a possibilidade de estender a instrução a "factos instrumentais".
Neste sentido, reconhece que o juiz deve poder ter poderes para investigar oficiosamente os factos que considere essenciais para a "verdade material" do processo. A função do juiz é assegurar que o ato impugnado seja analisado à luz de todos os factos relevantes, mesmo que estes não tenham sido expressamente invocados pelas partes. Os chamados "factos instrumentais" referem-se àqueles elementos que, apesar de não integrarem diretamente a causa de pedir, têm um papel crucial no entendimento e na análise do contexto do ato impugnado. Ou seja, são factos que, embora não façam parte diretamente da causa de pedir, servem como instrumentos que ajudam a clarificar a verdade material do caso.
O Professor Vasco Pereira da Silva confirma a posição anteriormente exposta: é à administração pública a quem cabe o impulso procedimental, podendo iniciar oficiosamente o procedimento, continuá-lo quando o requerente perder o interesse e decidir em termos diferentes do pedido. A violação deste princípio invalida a decisão final. (3)
O Professor Freitas do Amaral acrescenta que os tribunais são passivos, pelo que aguardam pela iniciativa dos particulares e só decidem pelo que são solicitados a se pronunciar. De modo contrário, a Administração é ativa, não estando condicionada pelas posições dos particulares, como comprovam os artigos 115º (factos sujeitos a prova) e 117º (solicitação de provas aos interessados) do CPA. (4)
IV - Decisão
O acórdão rejeitou a argumentação da Autora, afirmando que não se verifica qualquer omissão instrutória suscetível de violar o princípio do inquisitório. A decisão fundamenta-se em dois planos distintos:
Consideração do contexto pandémico: O acórdão refere expressamente que, tanto o relatório da inspeção, como a respetiva informação final da Sra. Inspetora, tiveram a devida atenção ao contexto pandémico no qual se inseriu a prestação de serviço da magistrada. Esta ponderação foi igualmente assumida pelo próprio acórdão da Secção do CSMP, o que demonstra que este elemento factual foi objeto de apreciação efetiva e concreta.
Avaliação dos processos judiciais indicados: A Inspetora esclareceu que foram tidos em consideração todos os processos que constavam da lista apresentada pela magistrada, bem como outros selecionados pela própria inspeção. Para além da consulta eletrónica dos autos, foi igualmente realizada consulta física, precisamente por nem todos os elementos constarem do sistema digital (Citius), o que denota um esforço efetivo de completude instrutória. Ademais, diversos processos foram mencionados no relatório final, com referência à sua complexidade e ao desempenho da magistrada em sede de audiência de julgamento, incluindo menção à audição de registos áudio das respetivas sessões.
A própria decisão do CSMP impugnada também se pronunciou sobre estes elementos, como se comprova pelos pontos 179 a 186 do acórdão, confirmando que as observações constantes do relatório inspetivo foram integradas na sua fundamentação.
Conclui-se que não se verificou qualquer violação do princípio do inquisitório, uma vez que os factos relevantes foram oficiosamente apurados e ponderados pelas entidades competentes no decurso do procedimento inspetivo e decisório. O acórdão considera, portanto, improcedentes as alegações da Autora.
[1] João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 10º ed., Âncora editora, Lisboa, 2009, p. 448.
[2] J. C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, coimbra, 10ª ed., 2009, p. 503.
[3] Vasco Pereira da Silva, Direito Constitucional e Direito Administrativo Sem Fronteiras, Almedina, coimbra, 2019, p. 180.
[4] Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, II, 4º ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 280.