Defesa da Administração
SIMULAÇÃO DE DIREITO ADMINISTRATIVO II
- 1. INTRODUÇÃO
Ex os. Meritíssimos Senhores Juízes, vem a Administração Pública, representada pelo Ministério da Administração Interna e pela Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), contestar as alegações apresentadas pela requerente Shandokan da Silva, que solicita a condenação da Administração à prática do ato de concessão de autorização de residência, nos termos do artigo 88.º, n.º2 da Lei n.º23/2007, de 4 de julho, ou, alternativamente, a declaração de deferimento tácito do seu pedido, por alegado decurso do prazo legal de decisão (art. 82.º/1 da Lei n.º 102/2017). Invoca ainda a violação de direitos fundamentais previstos na CRP.
No exercício das suas atribuições, a AIMA, criada pelo DL n.º 41/2023, de 2 de junho, assumiu a missão de promover a integração de migrantes, gerir os fluxos migratórios e assegurar o cumprimento das políticas de asilo em Portugal, sucedendo ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) numa transição que visou reforçar a eficiência e a humanização destes processos. A sua atuação rege-se, seriamente, pelos princípios fundamentais do direito administrativo, consagrados no art. 266.º da CRP e entre os artigos 3.º e 10.º do CPA, com especial determinação os princípios da legalidade, proporcionalidade, boa-fé e eficiência. Ademais, a AIMA tem implementado boas práticas administrativas, como a simplificação dos procedimentos, a digitalização de serviços e a criação de canais de atendimento acessíveis, garantindo a tramitação equitativa e transparente dos pedidos de autorização de residência, em conformidade com a Lei n.º 23/2007. Estas práticas refletem o compromisso da Administração Pública com a prossecução do interesse público, o respeito pelos direitos dos cidadãos estrangeiros e a adptação às exigências de uma gestão migratória moderna, ainda que enfrentemos desafios operacionais decorrentes do elevado volume de solicitações e da recente reestruturação institucional.
Deste modo, com o devido respeito, a AP refuta integralmente as pretensões do requerente, pelos fundamentos que passamos a expor.
- 2. SÍNTESE DA POSIÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO
- Não existe ato administrativo devido, pois o requerente não cumpriu os requisitos legais para o deferimento da autorização de residência nomeadamente a apresentação de documentação exigida completa e correta, dentro dos prazos legais;
- Não se verifica deferimento tácito do pedido, dado que o procedimento em causa está excluído do regime do artigo 130.º do CPA e o atraso na decisão é justificado por circunstâncias excepcionais;
- Não há violação de direitos fundamentais, mas apenas condicionalismo práticos inerentes à situação de um cidadão estrangeiro sem estatuto de residência legal;
- Nos termos do artigo 187 do CPA, o recurso interposto é intempestivo, por ter sido apresentado fora do prazo legal;
- Alterações institucionais (extinção do SEF e criação da AIMA), mudanças legislativas e a sobrecarga de pedidos constituem faltares objetivos que justificam a demora na tramitação do pedido.
- 3. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
- 3.1 Inexistência de Ato Administrativo Devido
Nos termos do art. 88.º/2 da Lei n.º 23/2007 a concessão de autorização de residência a cidadãos estrangeiros que exerçam atividade profissional subordinado exige o cumprimento de requisitos objetivos, incluindo a apresentação de documentação completa, como contrato de trabalho e comprovativo de inscrição na Segurança Social. O art. 102.º do CPA impõe, então, ao interessado o dever de fornecer os elementos necessários à decisão administrativa. Por conseguinte, o art, 108.º do mesmo diploma impõe que se o requerimento inicial não satisfazer o disposto no art. 102.º CPA, será o requerente a ser convidado a suprir as deficiências existentes.
É certo que não será de ignorar o disposto no art. 108.º/2, o qual determina o dever de os órgãos e agentes administrativos procurarem suprir oficiosamente as deficiências dos requerimentos, mas também o é que esse dever pretende que os interessados não sofram por meras imperfeições na formulação dos pedidos. Ora, a ausência da documentação referida não configura uma "mera imperfeição", mas sim é condição sine qua non da admissão do requerimento. Ademais, não será de ignorar a interpretação restritiva que o STA tem vindo a fazer deste preceito, na medida em que defende que esta supressão oficiosa só poderá acontecer se a AP estiver, com toda a certeza, convicta das alterações a fazer.
Tendo em consideração a natureza dos documentos em falta será no mínimo irrazoável imputar à AP o dever de suprir a sua ausência. Logo, neste caso concreto seria Shandokan da Silva quem tinha o onus de suprir as irregularidades do requerimento, pelo que não existia ato devido pela AP e teria, consequentemente, de ser interrompida a marcha do procedimento.
- 3.2 Inaplicabilidade do Deferimento Tácito
O requerente invoca o artigo 82.º, n.º 1, da Lei n.º 102/2017, que estabelece o prazo de 90 dias para decisão sobre pedidos de autorização de residência, e o artigo 130.º do CPA, que regula o deferimento tácito. Contudo, esta pretensão não procede.
Em primeiro lugar, cumpre compreender que, como já ficou esclarecido no ponto anterior, a AP não tinha dever de decisão, pelo que não poderia estar em incumprimento desse mesmo dever nos termos do art. 129.º CPA.
Em segundo lugar, o artigo 130.º do CPA, relativo a atos tácitos estatui que só existem atos tácitos nas situações em que a lei expressamente preveja a formação de deferimentos tácitos e, excepcionalmente, prevê que, existindo um dever legal de decisão, associa o decurso do prazo legal para a tomada de decisão a uma presunção de deferimento.
Desta forma, o artigo 130.º CPA apresenta as condições para a produção de uma ato tácito: (1) o órgão da Administração competente seja legalmente solicitado por um interessado a pronunciar-se num caso concreto; (2) que o órgão tenha sobre a matéria em causa o dever legal de decidir através de um ato administrativo; (3) que tenha decorrido o prazo legal sem que tenha sido tomada uma decisão expressa sobre o assunto; (4) e que a lei ou regulamento atribua ao silêncio da Administração o significado de deferimento.
Ora, nos termos do artigo 82º, n.º3, da Lei n.º 102/2017, de facto, o silêncio da Administração poderá ser interpretado como deferimento tácito. No entanto é relativo apenas quanto a um do pedido de renovação da autorização de residência (n.º2), que não é o caso.
Ora vejamos, se a AP não tinha o dever de decisão, nem sequer a previsão de deferimento tácito na lei 102/2017 exister, como poderá esta presunção funcionar?
- 3.3 Impossibilidade de Recurso
Ainda que, tal como alegado por Shandokan da Silva, se admitisse a inexistência de um ato administrativo por uma omissão ilegal, sempre se imporia a verificação da tempestividade do processo interposto.
Nos termos do art.187º do CPA, "As reclamações e recursos contra a omissão ilegal de atos administrativos podem ser apresentados no prazo de um ano", prazo que, segundo o disposto no art.188/3, começa a contar na data do incumprimento do dever de decisão.
Ora, o pedido de autorização de residência foi apresentado em 5/5/2020, sendo o prazo legal de decisão de 90 dias (cf. art. 82.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, na versão da Lei n.º 102/2017), segundo o art.87º CPA, este prazo de um ano começaria a contar no dia 15/9/2020. Daí que o requerente teria de ter recorrido até 15/9/2021
Contudo, apenas agora, vários anos depois, vem intentar o presente processo, já muito para além do prazo máximo de um ano legalmente previsto, o que conduz, inevitavelmente, à sua inadmissibilidade por intempestividade.
- 3.4 Ausência da Violação de Direitos Fundamentais
O requerente alega a violação de direitos fundamentais, como o direito ao trabalho, à saúde, à família e à livre circulação.
Nos termos do art. 15.º CRP, os cidadãos estrangeiros gozam dos mesmos direitos que os cidadãos portugueses, por força do princípio da equiparação. Contudo, não será de esquecer que estão sujeitos às limitações impostas pela sua condição jurídica. A ausência de autorização de residência implica condicionalismo práticos que certamente não configuram violações de direitos fundamentais.
Longe de violar direitos fundamentais, a Administração aplicou com rigor o regime jurídico da Lei n.º 23/2007, que baliza o estatuto de Sandokan da Silva. O seu exercício profissional, garantido por contrato de trabalho e contribuições para a Segurança Social, demonstra que o direito ao trabalho permanece intocado. O acesso à saúde, assegurado pelo Serviço Nacional de Saúde mediante taxas legais (Decreto-Lei n.º 113/2011), refuta qualquer alegação de exclusão. As dificuldades de circulação ou de reunião familiar, por sua vez, decorrem da necessidade de regularização migratória, uma exigência legítima que visa a ordem pública e não uma afronta aos artigos 44.º ou 67.º da CRP.
O princípio da proporcionalidade a que a AP está sujeita foi respeitado (art. 18.º/3 CRP) nas restrições impostas ao requerente, sendo as proporcionais ao objetivo de controlo migratório subjacente à sua atuação.
Para além disso, a jurisprudência constitucional reitera que tais restrições, quando proporcionadas e fundadas na lei, não configuram afrontas aos direitos fundamentais, mas sim a aplicação regular do quadro normativo que rege a condição de cidadãos estrangeiros. Veja-se, por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 423/2001, o qual foi categórico ao referir que, e passo a citar: "…apesar de o artigo 15º, nº 1, da Constituição se reportar aos estrangeiros que se encontrem ou residam em Portugal, o princípio da equiparação não pode, aqui, operar, de pleno, relativamente aos que apenas se encontrem em Portugal".
- 3.5 Inexistência de Responsabilidade Civil da Administração
O Requerente alega, em última linha, a existência de danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe teriam sido causados pela alegada omissão da Administração, pretendendo assim responsabilizar o Estado a título de responsabilidade extracontratual.
Contudo, tal pretensão não poderá proceder.
Nos termos do artigo 7.º, n.º 1, do RREEP, as pessoas coletivas de direito público são responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas, praticadas no exercício da função administrativa. Contudo, como se demonstrou no ponto 3.2, a Administração não tinha sequer o dever de decisão sobre o pedido do Requerente, por este não ter cumprido os pressupostos legais exigidos. Nessa medida, ponderar a existência de uma omissão ilícita por ausência de decisão, quando esta não era juridicamente devida, configura uma exigência infundada e, no mínimo, irrazoável.
Existe ainda responsabilidade civil da Administração Pública, segundo o disposto no artigo 7.º, n.º 3 e 4do RREEP, por funcionamento anormal do serviço. Quando este não atinja os padrões médios de resultado que, em face das circunstâncias, seriam razoavelmente exigíveis.
Ora, no caso sub judice, a atuação da Administração decorreu num contexto extraordinário de reorganização institucional – com a extinção do SEF e a criação da AIMA –, associado a um volume inédito de pedidos apresentados, alterações de regras procedimentais, a modificação recente das regras substantivas que acabou com a automaticidade da atribuição da residência e sérias limitações operacionais e materiais. Estas circunstâncias, conforme já demonstrado, constituem fatores objetivos e excecionais que não revelam uma violação dos deveres mínimos de funcionamento do serviço público, mas antes uma pressão estrutural e transitória sobre o sistema.
Tal como reconhecido na doutrina (cfr. Mário Aroso de Almeida), a insuficiência temporária de recursos humanos ou materiais não gera automaticamente responsabilidade da Administração, desde que o serviço disponha dos meios mínimos razoáveis e procure adaptar-se às exigências.
O RREEP não consagra uma responsabilidade objetiva e automática, mas exige a verificação de uma falta de serviço, aferida por padrões abstratos e razoáveis de diligência. Assim, a atuação da Administração não configura uma "falta coletiva" nem uma "falta anónima" nos termos do artigo 7.º, n.ºs 3 e 4 do RREEP, nem se mostra violadora de normas destinadas a proteger concretamente os interesses do requerente.
O dano alegado, a existir, não é imputável a um comportamento ilícito da Administração, mas antes a uma situação complexa de transição institucional e reorganização administrativa que não poderá ser convertida, por si só, em causa de responsabilidade civil.
Não se verificam, pois, os pressupostos legais necessários à responsabilização civil extracontratual da Administração Pública, devendo improceder também este pedido.
- 4 PEDIDO FINAL
Pelos motivos expostos, a AP requer ao Tribunal que:
- Julgue improcedente o pedido de condenação à prática do ato de concessão de autorização de residência, por inexistência do ato devido e intempestividade do recurso;
- Consequente e coerentemente, declare que não se formou deferimento tácito do pedido do requerente, face à exclusão do seu regime;
- Reconheça que não há violação de direitos fundamentais, mas apenas condicionalismo legais aplicáveis à situação do requerente;
Termos em que, com o devido respeito, se espera que V. Exas. façam justiça.
Grupo composto por: Bárbara Martins n.69510, Carolina Beleza n.69527, Diogo Pereira n.69484., Inês Godinho n.69841, Inês Valeriano n. 69631, Madalena Gomes n.69777 Maria Inês n.69583, Maria Ramos 69811., Miguel Cordeiro n.69654, Rodrigo Silva n.69841, Teresinha Frutuoso n.69867.