Comentário ao Acórdão de 21/11/2019 (Processo nº 965/18.7BESNT) do STA- Carolina Mendes

02-12-2024

Análise do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA)

Contexto e Enquadramento do Acórdão

O Acórdão em questão aborda uma situação de competência na aplicação de uma coima pela Câmara Municipal de Sintra, em decorrência da "má realização de uma parte da obra", que divergia do licenciamento aprovado. O cerne da controvérsia é a delegação de poderes do presidente da Câmara Municipal de Sintra ao vereador, e se essa delegação, tal como ocorrera, incluía a competência sancionatória, ou seja, a aplicação de coimas.

O Tribunal, ao analisar o caso, conclui que a delegação de poderes não foi suficientemente clara e explícita quanto ao exercício da competência sancionatória. O despacho de delegação, embora tenha transferido certos poderes ao vereador, não especificou a delegação dos poderes para a aplicação de coimas, e, por conseguinte, o Tribunal considera que o ato sancionatório praticado pelo vereador é nulo.

A decisão do Tribunal Central Administrativo Sul, que anulou o ato punitivo do vereador, baseia-se essencialmente em duas considerações principais:

  1. Princípio da Legalidade e da Clareza na Delegação: O Tribunal destaca que, em matéria sancionatória (como a aplicação de coimas), a competência para agir deve estar claramente definida. A delegação de poderes, principalmente no contexto de atos sancionatórios, deve ser expressa e de forma clara, tanto na lei como no ato de delegação. Esse requisito é especialmente relevante no contexto de poder administrativo sancionatório, que está relacionado com princípios estruturantes do direito penal, como o princípio da legalidade e o princípio da reserva de competência.
  2. Nulidade do Ato Praticado pelo Vereador: O Tribunal observa que o presidente da Câmara Municipal de Sintra não especificou no despacho de delegação que o vereador estava autorizado a aplicar coimas. Dado que, de acordo com o artigo 47º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) e o artigo 35º da Lei nº 75/2013 (Lei das Autarquias Locais), a competência para a aplicação de coimas é uma competência indelegável de forma vaga ou genérica, o ato praticado pelo vereador é considerado nulo, uma vez que a competência sancionatória não foi devidamente transferida para ele. Portanto, a coima imposta ao particular não tem qualquer efeito, e o mesmo não terá de pagar a coima.

A questão da delegação de poderes é crucial para entender o raciocínio do Tribunal e a decisão no Acórdão. Em termos jurídicos, a delegação de poderes envolve a transferência da competência para um ato específico de uma autoridade superior ao seu subordinado. Contudo, para que a delegação seja válida, a lei exige clareza quanto aos poderes transferidos, especialmente em matérias que envolvem a imposição de sanções, que estão sujeitas ao princípio da legalidade (art. 3º, nº1 CPA) e ao princípio da reserva de competência.

No que diz respeito à natureza jurídica da delegação de poderes, existem diversas teorias doutrinárias, que ajudam a entender a interpretação do Tribunal no presente caso.

As principais teorias são as seguintes:

Segundo a Teoria da Alienação ao delegar poderes, o delegante transmite a titularidade e o exercício dos poderes ao delegado. No entanto, essa tese é criticada porque, se fosse realmente uma alienação, o delegante perderia a competência sobre o ato, o que não acontece na prática, pois o delegante pode revogar ou modificar a delegação a qualquer momento.

O Professor Marcelo Rebelo de Sousa defende a tese que propõe que a delegação de poderes é um ato com duplo efeito, já que transfere o exercício da competência para o delegado, mas não a sua titularidade. O delegante mantém a titularidade dos poderes, mas o delegado pode exercer a competência em seu nome. A delegação tem caráter precário, podendo ser revogada a qualquer momento pelo delegante.

Já a Tese de Autorização a delegação é vista como uma autorização para o delegado exercer competências que, de outra forma, seriam suas. Contudo, essa teoria é contestada quando o delegado age sem a permissão expressa do delegante, já que isso geraria um vício de incompetência.

A delegação concede ao delegado tanto a titularidade quanto o exercício dos poderes, mas o delegado ainda está sujeito ao controlo do delegante, que não perde totalmente a capacidade de agir, de acordo com a tese dotada pelo Professor Paulo Otero.

Por fim a Tese da Transferência de Exercício afirma que o delegado só ganha a competência para o exercício do ato após a delegação. O delegante mantém a titularidade da competência, mas transfere o exercício para o delegado, ou seja, o delegado não possui competência pré-existente, sendo habilitado apenas pelo ato de delegação.

No contexto do acórdão, a delegação de poderes foi insuficiente e não atendeu aos requisitos legais. O despacho de delegação, ao não especificar a competência sancionatória, gerou dúvidas quanto à extensão dos poderes transferidos, e, em consequência, o Tribunal concluiu que o vereador não tinha competência para aplicar a coima. O Tribunal reforça que, em matérias de sanções administrativas, é necessário que o ato de delegação seja explícito e claro, caso contrário, a aplicação de coimas pelo delegado é considerada nula.

Conclusão

Este Acórdão ilustra a importância da clareza e da precisão nos atos administrativos, especialmente quando se trata de matérias sancionatórias. A delegação de poderes, embora seja uma prática comum na administração pública, exige um cumprimento rigoroso dos requisitos legais e deve ser feita de forma explícita, evitando lacunas que possam gerar dúvidas quanto à competência do delegado. Em matéria de aplicação de coimas, o Tribunal reafirma a necessidade de uma delegação expressa e específica dos poderes sancionatórios, caso contrário, o ato praticado pelo delegado será inválido.

O caso também reflete a tensão existente nas diferentes teorias sobre a natureza jurídica da delegação de poderes, em especial a relação entre a titularidade e o exercício da competência, e a necessidade de garantir que a delegação não é configurada como uma alienação indevida dos poderes do delegante.

Bibliografia

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CAETANO, MARCELLO, "Manual de Direito Administrativo", Volume I, 10a edição, Coimbra, Almedina.

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SOUSA, MARCELO REBELO DE / MATOS, ANDRÉ SALGADO DE, "Direito
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Carolina Mendes (aluna nº69527)

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