Comentário ao Acórdão STA n.º 046963/02 - Inês Fernandes
ANÁLISE AO ACÓRDÃO Nº 046963/02
Resumo do Acórdão
O acórdão em questão refere-se a um recurso contencioso interposto por uma empresa que contestava um ato administrativo no âmbito de um concurso público. A questão central era a violação do princípio da legalidade e da transparência, devido à introdução de subcritérios de avaliação "a posteriori" sem a devida fundamentação. O Supremo Tribunal Administrativo (STA) decidiu anular o ato administrativo, pois a falta de fundamentação adequadamente apresentada violava o princípio da legalidade e afetava a transparência do processo. A decisão do STA destaca a importância de a Administração Pública justificar adequadamente as suas escolhas, especialmente em situações em que o ato impacta diretamente os direitos dos particulares.
Este acórdão ilustra a necessidade de uma fundamentação clara e precisa por parte da Administração, uma vez que a falta de fundamentação compromete tanto a legalidade do ato como a capacidade do administrado de reagir de forma informada e eficaz. Além disso, o julgamento reafirma o papel do controle judicial sobre os atos administrativos, permitindo que os tribunais assegurem que a Administração Pública cumpra os princípios e normas aplicáveis.
Tópicos de Relação com o Direito Administrativo
a) A Fundamentação dos Atos Administrativos
A fundamentação dos atos administrativos é um dos pilares do Direito Administrativo moderno, sendo reconhecida como uma exigência constitucional. O artigo 268.º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra explicitamente o direito do particular à fundamentação das decisões administrativas, estabelecendo que as decisões devem ser motivadas, especialmente quando afetam direitos ou interesses dos cidadãos. Esta exigência não é meramente formal, mas serve como uma ferramenta essencial para garantir a transparência e a legalidade da atuação administrativa.
No caso do acórdão, o STA reconhece a importância de a Administração fundamentar adequadamente as suas decisões, uma vez que a falta de uma motivação clara inviabiliza o controle judicial e prejudica a confiança pública. Este raciocínio está em conformidade com o artigo 124.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), que estabelece a obrigatoriedade de fundamentação para todos os atos administrativos, em especial aqueles que envolvem decisões que afetam diretamente os direitos dos administrados.
b) Princípio da Legalidade e da Transparência
O princípio da legalidade é outro pilar fundamental do Direito Administrativo, que exige que a Administração Pública atue sempre dentro dos limites da lei. No contexto do acórdão, a introdução de critérios "a posteriori" no concurso público sem fundamentação viola este princípio, pois a Administração não justificou adequadamente a sua decisão, tornando-a passível de controle judicial. Este princípio está consagrado no artigo 266.º da CRP, que estabelece que a Administração Pública deve atuar em conformidade com a Constituição, a lei e os regulamentos.
Além disso, o princípio da transparência é estreitamente relacionado com a fundamentação, já que uma decisão administrativa não só deve ser legal, mas também compreensível e passível de escrutínio. O artigo 9.º da CRP reforça a ideia de um Estado de direito democrático, no qual as decisões da Administração são passíveis de publicidade e controle.
c) O Papel do Controle Judicial e dos Direitos Subjetivos
O acórdão também ilustra a crescente relevância do controle judicial dos atos administrativos. A capacidade dos particulares de questionar judicialmente as decisões da Administração, conforme estipulado no artigo 268.º, nº 3, da CRP, reflete a evolução da relação entre os cidadãos e a Administração, que deixou de ser pautada apenas pela subordinação e passou a reconhecer a posição do particular como sujeito de direitos. Este controle judicial assegura que os direitos fundamentais dos administrados sejam respeitados e protege a legalidade dos atos administrativos.
A jurisprudência tem reforçado essa tendência de garantir a legitimidade dos particulares para contestar a Administração, como demonstrado neste acórdão. A doutrina contemporânea também corrobora essa posição, como evidenciado pela "norma de proteção", desenvolvida por autores como Ottmar Bühler, que destaca a importância de as normas jurídicas não apenas atenderem ao interesse público, mas também protegerem os direitos dos indivíduos, permitindo sua imposição judicial.
Em Portugal, Vasco Pereira da Silva tem sido um dos principais defensores da "norma de proteção", adaptando-a ao contexto jurídico português e defendendo uma noção ampla de Direito Subjetivo. Pereira da Silva argumenta que a "norma de proteção" reconhece que os particulares são titulares de direitos subjetivos em relação à Administração, sempre que uma norma jurídica vise proteger os seus interesses, para além do interesse público.
d) O Estado de Direito e a Paridade nas Relações Administrativas
A relação entre os particulares e a Administração Pública evoluiu significativamente ao longo do tempo, especialmente com a transição do Estado Liberal para o Estado Social. A CPR, com o seu artigo 2.º, que estabelece o princípio da igualdade perante a lei, consagra a evolução da relação de subordinação para um modelo de paridade. Este modelo implica um equilíbrio entre os direitos dos cidadãos e os poderes da Administração Pública.
Neste contexto, o acórdão reflete a mudança de paradigma na relação entre os particulares e a Administração Pública, reconhecendo que o particular tem agora a capacidade de questionar judicialmente atos administrativos que considerem ilegais ou prejudiciais aos seus direitos. A evolução da doutrina, com a construção de uma visão mais integradora dos direitos subjetivos dos cidadãos, reflete essa transformação na relação entre os indivíduos e o Estado.
Conclusão
Em suma, o acórdão analisado reforça a importância da fundamentação dos atos administrativos como instrumento essencial para a transparência, legalidade e controle judicial da Administração Pública. A decisão do Supremo Tribunal Administrativo confirma que a falta de fundamentação não só prejudica a legalidade do ato como também afeta a confiança pública e os direitos dos cidadãos. A evolução da relação entre os particulares e a Administração Pública, com o reconhecimento dos direitos subjetivos dos indivíduos, reflete a transição de um modelo de subordinação para um de paridade, onde o controle judicial se torna uma ferramenta essencial para a proteção dos direitos fundamentais.
O acórdão, portanto, não só assegura a legitimidade do particular para contestar a Administração, mas também demonstra como a fundamentação dos atos administrativos é um mecanismo imprescindível para garantir a justiça, a transparência e a efetividade do Estado de Direito democrático. A jurisprudência e a doutrina convergem na defesa da paridade nas relações administrativas, um princípio que se consolida como pilar do Direito Administrativo contemporâneo.
Bibliografia consultada:
- FREITAS do AMARAL, Diogo; Curso de Direito Administrativo - Vol. I; Almedina.
- FREITAS do AMARAL, Diogo; Curso de Direito Administrativo - Vol. II; Almedina.
- SÉVULO CORREIA, J.M. e PAES MARQUES, Francisco; Noções de Direito Administrativo – Vol. I; Almedina.
- PEREIRA da SILVA, Vasco; Em Busca do Acto Administrativo Perdido; Almedina.
Discente: Inês Sequinho Fernandes, nº68157