Comentário ao Acórdão STA de 21/04/2022 - Constança Pinto

13-12-2024

Acórdão de 21/04/2022 (Proc.0713/21.3BELSB), do Supremo Tribunal Administrativo

   O caso sobre o qual me debruço consiste num recurso interposto por A…………, um requerente que contesta uma deliberação do Conselho Geral Independente (CGI) da RTP (Rádio e Televisão de Portugal), que convidou uma equipa composta por B…………. e C…………. a apresentar um projeto estratégico da empresa para os próximos três anos. Este projeto seria parte do processo para a futura indigitação dos membros do Conselho de Administração da RTP

   A questão central do recurso é averiguação da natureza jurídica do procedimento de seleção e nomeação dos membros do Conselho de Administração da RTP, que é uma empresa pública. Esclareça-se: procura-se averiguar se o ato em questão é um ato de gestão pública, sujeito a regras de direito público, ou se é um ato de natureza privada, estando fora da jurisdição administrativa. A decisão do STA será crucial para esclarecer o alcance da aplicação do direito administrativo a entidades públicas que operam sob o regime de direito privado, como é o caso da RTP.

I. Sobre o caso Sub Judice

   Aqui estão os principais pontos do acordão:

  • Início do processo: O requerente, A…………, entrou com uma providência cautelar no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TAC) para suspender a eficácia da deliberação do CGI que convidou os dois indivíduos a apresentar o projeto estratégico. O TAC declarou-se incompetente para apreciar o mérito do caso, alegando que não possuia competência para tal.
  • Recurso para o TCA Sul: O requerente apelou da decisão para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul), que manteve a decisão do TAC, ou seja, negou provimento ao recurso e confirmou a incompetência do tribunal para tratar do mérito.
  • Recurso de revista: O requerente então interpôs um recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), argumentando que a questão envolvia a interpretação de normas relevantes sobre a seleção e nomeação de membros do Conselho de Administração da RTP, e que deveria ser tratada no âmbito da jurisdição administrativa, pois envolve um procedimento público de nomeação de gestores públicos para uma empresa pública.
  • Argumentos do requerente: O requerente alega que a deliberação do CGI da RTP, no contexto de seleção e nomeação de membros do Conselho de Administração, configura um ato administrativo, e, portanto, deveria estar sujeito a regras do direito administrativo e ao controlo jurisdicional administrativo. O CGI, segundo o requerente, exerce poderes públicos ao realizar esse processo de seleção, em nome do Estado, que detém a concessão do serviço público de rádio e televisão.
  • Argumentos da RTP e dos contra-interessados: A RTP e os contra-interessados argumentam que a deliberação do CGI é um ato interno da empresa, sujeito ao direito privado. Eles sustentam que a RTP, sendo uma sociedade anónima de capitais públicos, rege-se pelo direito privado, a menos que haja uma norma específica que disponha de outra forma. Portanto, eles defendem que o recurso não deve ser admitido, pois o processo de seleção e nomeação não envolve questões de direito público.
  • Intervenção do Ministério Público: O Ministério Público, após ser notificado, emitiu parecer favorável ao provimento do recurso, indicando que o recurso deveria ser admitido e que a questão possui relevância jurídica.
  • Decisão em conferência: O processo foi submetido à conferência para uma decisão final.

II. Sobre a RTP e o CGI

   A Rádio e Televisão de Portugal, S.A. (RTP), decorre da incumbência constitucional (art.38.º/5 CRP) estatal de garantia da existência e funcionamento de um serviço público de rádio e de televisão.

A missão e os objetivos do serviço público de televisão e de rádio estão estabelecidos na Lei da Televisão [1]e na Lei da Rádio[2], assim como nos Contratos de Concessão de Serviço Público de Televisão [3] e de Radiodifusão Sonora[4].

   A RTP é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos (arts1.º/1 e 6.º/1 e 4, dos Estatutos da Rádio e Televisão). Os estatutos da RTP [5], enquanto concessionária do serviço público de rádio e televisão, introduziram um novo modelo de governação com a criação do Conselho Geral Independente (CGI). Este órgão social tem competências de supervisão e fiscalização interna do cumprimento das obrigações de serviço público de rádio e televisão previstas no contrato de concessão celebrado entre a RTP e o Estado. O CGI é também responsável pela escolha do Conselho de Administração e respetivo projeto estratégico para a sociedade, bem como definir as linhas orientadoras às quais o mesmo projeto se subordina.

   E de acordo com o disposto no artº 1º, nº 2, os Estatutos remetem, no que ali não se encontrar previsto, para o regime jurídico do sector público empresarial, aprovado pelo DL nº 133/2013 de 03.10 e para o Estatuto do Gestor Público aprovado pelo DL nº 71/2007 de 27.03.

   Por isso, os artºs 5º, nº 1, e 14º, nº 1, ambos do Decreto-Lei nº 133/2013, de 03.10 (aplicável ex vi artº 1º, nº 2, dos Estatutos), dispõem: "as empresas públicas [id est, "as organizações empresariais constituídas sob a forma de sociedade de responsabilidade limitada nos termos da lei comercial, nas quais o Estado ou outras entidades públicas possam exercer, isolada ou conjuntamente, de forma direta ou indireta, influência dominante, nos termos do presente decreto-lei"], regem-se pelo direito privado, com as especificidades decorrentes do presente decreto-lei, dos diplomas que procedam à sua criação ou constituição e dos respetivos estatutos".

   No que diz respeito à RTP enquanto empresa pública, aplica-se o Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro, que regula o setor empresarial do Estado, bem como a Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2007, de 1 de fevereiro, que estabelece os princípios de bom governo para as empresas deste setor (em cumprimento da qual a RTP mantém um Código de Ética). Aplica-se ainda a Resolução do Conselho de Ministros n.º 70/2008, de 22 de abril, que define as orientações estratégicas para o setor.

   Nos termos conjugados do disposto no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 28/2009, de 19 de junho e do previsto no Decreto – Lei n.º 225/2008, de 20 de novembro, a RTP é considerada uma entidade de interesse público, pelo que está sujeita aos modelos de administração e fiscalização previstos no Código das Sociedades Comerciais.

IV. Sobre as empresas públicas e a sua sujeição ao direito privado 

   As organizações económicas de natureza societária (pessoas coletivas que revestem a forma de sociedade comercial, em que o Estado exerce influência dominante) são uma modalidade de empresa pública.

   As empresas públicas pertencem à Administração Pública – entidades que são pessoas coletivas públicas, ou que são controladas por aquela –, estando, de um modo geral, sujeitas ao direito privado, de modo que a atividade que desenvolvem é de gestão privada, sujeitas ao direito privado (em especial do Direito Comercial). As empresas públicas, pela natureza do seu objeto, pela índole específica da atividade a que se dedicam, são organismos que precisam de uma grande liberdade de ação, de uma grande maleabilidade e flexibilidade no seu modo de funcionamento.

   Conforme o Decreto-Lei n° 133/2013, de 13 de outubro, são entidades com atribuições de personalidade jurídica privada. Estas empresas seguem as leis do Direito privado, a menos que seus estatutos especifiquem um funcionamento particular que não esteja sujeito ao decreto-lei correspondente. Estas, são entidades que se constituem de acordo com o direito comercial, mas com a característica distintiva de que o Estado pode exercer uma influência dominante nas mesmas, seja de forma direta ou indireta.

  A formação de empresas públicas sob a forma de sociedade comercial em Portugal pode ocorrer de acordo com o Artigo 10º do Decreto-Lei nº 133/2013, seguindo os termos e condições estabelecidos no Código de Sociedades Comerciais (C.S.C). Quanto à sua extinção, esta deve ser processa-se nos termos previstos na lei comercial para as sociedades.

  Conforme exposto no acordão: Não há indicação legal sobre as situações em que há lugar a nomeação e aquelas em que há lugar a eleição do gestor público. Tendencialmente, há lugar a eleição no caso das empresas públicas e a nomeação no caso das empresas E.P.E. Mas a resposta certa só se pode dar caso a caso, em função da lei ou dos estatutos da empresa. Não obstante, há uma diferença relevante do ponto de vista jurídico: ainda que relativa a uma empresa SA, a nomeação é um ato administrativo praticado pelo Conselho de Ministros; a eleição será, em qualquer caso, uma deliberação do órgão competente da empresa pública e, portanto, um ato de direito privado.

V. Sobre a decisão

   De acordo com os Estatutos da RTP, a eleição dos membros do Conselho de Administração é feita pelo CGI, e não por nomeação do Governo. A legislação aplicável aponta para uma gestão privada, não administrativa, o que significa que a escolha dos membros do Conselho de Administração não é um ato de autoridade pública.

  A decisão do TAC e do TCA Sul está correta ao entender que este ato é regido por normas de direito privado e não envolve o exercício de poderes públicos. Deste modo, porque não há base legal para submeter esse ato à jurisdição administrativa, sufraga-se a posição do STA. que nega a procedência do recurso. 

Referências

[1] Lei n.º 27/2007, de 30 de Julho, alterada pelas Leis n.º 8/2011, de 11 de Abril e n.º 40/2014, de 9 de julho

[2] Lei n.º 54/ 2010, de 24 de Dezembro, alterada pela Lei n.º 38/2014, de 9 de julho.

[3] Celebrados em 25 de março de 2008

[4] Celebrado em 30 de junho de 1999

[5] Aprovados pela Lei n.º39/2014, de 9 de julho


Bibliografia

  • AROSO DE ALMEIDA, Teoria Geral do Direito Administrativo, 11.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2024;
  • COSTA GONÇALVES, Manual de Direito Administrativo, Volume, I, 1.ª Edição, Almedina, 2019;
  • FREITAS DO AMARAL, Curso De Direito Administrativo, 3ª Edição, Vol. I, Lisboa, Almedina, 2006;
  • REBELO DE SOUSA/MATOS SALGADO, Direito Administrativo Geral, Tomo I, Lisboa, Dom Quixote (2008);
  • VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 5.ª Edição, Coimbra, 2017
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