Comentário ao acórdão STA 30/2020 - Maria Inês Duarte
Serve o presente comentário para analisar o acórdão de 30 de outubro de 2020.
O presente acórdão trata uma ação contra o Município – que nunca é revelado – na qual foram impugnados os seguintes atos: 1) o ato de delegação de poderes, neste caso praticado pelo Presidente da Câmara Municipal em questão; 2) o ato de subdelegação de poderes praticado pela Vereadora e o ato de delegação de poderes praticado pelo Presidente da Câmara Municipal; 3) o ato de subdelegação de poderes praticado Diretor do Departamento J. Foi requerida a declaração de nulidade ou inexistência dos atos referidos anteriormente, tal como condenação do réu Município a praticar todos os atos e operações materiais que se revelarem necessários à reconstituição da situação atual hipotética à data da execução da sentença anulatória.
Cumpre referir antes da análise intrínseca do Acórdão, o que se entende por delegação e subdelegação de poderes.
A delegação é, digamos, um modelo de transferência de competências assente num acordo de vontades, previsto na Lei das Autarquias Locais (LAL, doravante), que consta no artigo 116º e seguintes. Neste caso, a delegação funda-se na celebração de um contrato inter administrativo (art.120º/1), cujo conteúdo deve integrar uma referência aos recursos humanos, patrimoniais e financeiros necessários e aos estudos que fundamentaram a decisão de celebrar o contrato (artigo 122º e 120º/2 do Código de Procedimento Administrativo (CPA, doravante)). Em suma, podemos definir a delegação de poderes como, o ato pelo qual um órgão da Administração, normalmente competente para decidir em determinada matéria, permite, de acordo com a lei, que outro órgão ou agente pratiquem os atos administrativos sobre a mesma matéria, definição esta que decorre do artigo 44º/º1 do CPA, que foi dada pelo Professor Freitas do Amaral e que foi acolhida pelo legislador.
Consequentemente, é preciso analisar os 3 requisitos da delegação de poderes que se encontram presentes no artigo 47º do CPA, de forma a podermos analisar este caso:
- Especificação dos poderes delegados ou dos atos que o delegado pode praticar;
- Existência de norma atributiva;
- Sujeição à aplicação nos termos do artigo 159º do CPA e a própria prática do ato de delegação (este último requisito é objeto de divergência doutrinária, sendo a opinião anteriormente referida é apresentada pelo Professor Freitas do Amaral).
O artigo 47º tem de ser sempre aplicado conforme o artigo 111º/2º da CRP, só pode haver delegação de poderes com base na lei.
O Professor Freitas do Amaral refere ainda que para haver delegação de poderes é necessária a existência de 2 órgãos. Isto deve-se ao facto de a delegação de poderes poder ser feita entre órgãos da mesma pessoa coletiva pública ou, até mesmo, entre órgãos diferentes; ou a existência de órgãos (o delegante) e um agente (o delegado). O professor refere ainda a habilitação genérica, que consta no artigo 44º/2 do CPA e a habilitação específica, estando ambos limitados pelo artigo 45º. A habilitação específica refere ainda atos de administração ordinária, sendo estes todos os atos administrativos não definitivos bem como os atos definitivos vinculados ou cuja discricionariedade não tenha alcance na orientação da entidade pública a que o órgão em questão pertencer.
É imprescindível referir, ainda, as várias espécies de delegação:
- Ampla ou restrita, conforme se trate de delegação de grande parte dos seus poderes ou apenas uma pequena parcela deles, uma vez que pelo artigo 45º alínea a) nunca se pode tratar da delegação global dos poderes do órgão;
- Específica ou genérica, correspondente à delegação de poderes para um ato isolado ou uma pluralidade de atos;
- Hierárquica ou não hierárquica.
Relativamente ao Município, este é definido pelo Professor Freitas do Amaral, como "(município) é a autarquia local que visa a prossecução de interesses próprios da população residente na circunscrição concelhia, mediante órgãos representativos por ela eleitos.".
É importante referir que nos regimes democráticos, o Município Autónomo pode ser dotado de:
- Autonomia plena
- Autonomia semi-plena
- Autonomia restrita (que é sistema existente em Portugal): Em parte este assemelha-se ao da autonomia semi-plena, relativamente aos controlos e tutela, ou seja, nesta modalidade, as atribuições e competências próprias do município e dos seus órgãos são em número insuficiente e os recursos financeiros ao seu dispor escassos. A autonomia existe, mas o seu âmbito de atuação é restrito, e restrita é a sua intensidade.
Retomando a análise do acórdão, o Tribunal Administrativo Fiscal do Porto decretou a sentença a 15/02/2019 e julgou completamente injustificada tal ação, absolveu o réu dos pedidos e interpôs ainda um recurso de apelação. Da apelação referida ocorre no número 6 que todos os atos praticados por este município, ou seja, os atos de delegação de competências e todos os atos praticados ao abrigo de tais operações estão dotados de invalidade administrativa. Para além disto, a sentença recorrida foi a de que o pedido impugnatório dirigido aos atos de delegação de poderes foi julgado como improcedente. Os atos em causa são: o ato de delegação de poderes praticado pelo Presidente da Câmara Municipal em 22/11/2002 e 21/01/2013; o ato de subdelegação de poderes praticado pela Vereadora a 25/02/2011; o ato de delegação de poderes por parte do Diretor de Departamento J em 03/03/2011; o ato de subdelegação de poderes praticado pelo Diretor de Departamento J em 22/01/2013.
Neste caso, a recorrente propugna pela revogação da sentença e que sejam declarados nulos os 3 primeiros atos de delegações referidos, apelando que dada a sua natureza e de acordo com o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), estes só poderiam ser delegados nos vereados e os restantes dois seriam inexistentes por serem consequentes de atos nulos que foram praticados por um agente e não um órgão.
Para além disto, levanta-se a problemática da contradição entre o disposto no RJUE e o disposto na LAL, ou seja, na matéria da subdelegação, desde que haja uma norma que confira a legalidade tal norma é aplicável, a não ser que esta tenha sido revogada. Com norma excecional é permitida a analogia. Na minha opinião prevalece a LAL uma vez que esta tem as competências, ao passo que o RJUE está limitado aos procedimentos.
Como já foi referido supra, o cerne da questão consiste em perceber se os dirigentes dos serviços municipais eram ou não dotados de poderes de delegação e subdelegação de instauração de processo de contraordenação relativa a matéria urbanística.
Por fim, os juízes negam o pedido a recurso, entre outros argumentos, com base nos artigos 68º e 70º da LAL, com destaque para o pressuposto do 70º, onde consta a delegação de competências no pessoal dirigente, cujo preceito no número 1 dá conta dos poderes de delegação do Presidente da câmara ou dos vereadores e que remete para o artigo 68º referido supra, conjugado com o número 3 alínea m) do artigo 70º. Com base neste fundamento, concordo com a decisão dos juízes.
Bibliografia:
- DIOGO FREITAS DO AMARAL, "Curso de Direito Administrativo", volume I
- JOÃO CAUPERS, "Introdução ao Direito Administrativo"