Comentário ao acórdão STA 2023-09-28- Maria Luísa Valadares
Acórdão de 2023-09-28 (Processo nº 02050/15.3BEPNF), de 28 de setembro, do Supremo Tribunal Administrativo
O acórdão em análise refere-se a um recurso de revista interposto pelo Município de Lousada em relação à decisão do Tribunal Central Administrativo (TCA) Norte que, por sua vez, revogou a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Penafiel, considerando que o Estado não seria responsável pela transferência dos encargos com o pessoal não docente[1] afetado ao Município de Lousada, apesar do nº7 da cláusula 2ª do contrato de execução nº 248/2009 prever uma transferência genérica de encargos.
A descentralização administrativa[2] e a autonomia das autarquias locais são princípios fundamentais que devem ser respeitados em todas as interações entre o Estado central e as autarquias e, como tal, estão previstas na Constituição da República Portuguesa (CRP). O artigo 6º da CRP consagra a descentralização administrativa e o artigo 238º da CRP reafirma a autonomia financeira das autarquias, permitindo-lhes gerir os seus próprios recursos e assumir as competências transferidas pelo Estado.
No entendimento do professor Freitas do Amaral, do ponto de vista jurídico, é o sistema descentralizado que permite que a Administração seja feita não só pelo Estado, como também por outras pessoas coletivas; por outro lado, do ponto de vista político administrativo, a descentralização coincide com o conceito de auto-administração, uma vez que cabe à população eleger os órgãos das suas autarquias locais, havendo certa independência no que toca à designação de competências.[3]Posto isto, o elemento central da presente análise consiste na interpretação do nº7 da cláusula 2ª do contrato de execução nº 248/2009, que prevê uma obrigação genérica do Estado transferir recursos financeiros para cobrir encargos relativos ao pessoal não docente.
Por um lado, o Tribunal a quo (TAF de Penafiel) revelou uma interpretação que, embora ligada a uma cláusula do contrato de execução, aludia a um entendimento mais amplo da descentralização administrativa, segundo o qual o Estado central deveria assumir os encargos associados à transferência de competências para as autarquias. Esse entendimento, a meu ver, está de acordo com o princípio da autonomia financeira das autarquias, que deve ser garantido pelo Estado, permitindo-lhes exercer adequadamente as funções e competências que lhe são atribuídas.
Contrariamente, o acórdão do TCA Norte parece restringir o conceito de "transferência de encargos", não permitindo que o Município de Lousada se beneficie do nº7 da cláusula 2ª do contrato de execução nº 248/2009, para garantir o pagamento das despesas com pessoal não docente. Ao rejeitar a interpretação dada pelo TAF, o Tribunal corre o risco de enfraquecer a autonomia financeira das autarquias locais, já que essas, ao receberem competências do Estado, devem ser acompanhadas dos recursos necessários para a sua execução[4]. Com isto, argumenta que o nº7 da cláusula 2ª se refere a uma obrigação de transferir valores apenas quando houver um acordo explícito entre o Estado e o Município para a fixação de valores específicos. Ora, esse entendimento pode ser válido dentro de uma leitura estrita do contrato, mas ignora a natureza da descentralização administrativa, que implica uma transferência de recursos não apenas de forma específica, mas também de forma abrangente e contínua, conforme as necessidades dos serviços a prestar.
Posto isto, considero esta interpretação excessivamente formalista uma vez que desconsidera a lógica subjacente à transferência de competências do Estado para as autarquias locais. Nesta linha de pensamento, a descentralização administrativa não deve ser vista apenas como a formalização de acordos pontuais sobre valores financeiros, mas como uma dinâmica contínua e articulada entre o Estado e as autarquias, que inclui a garantia de recursos adequados para o cumprimento das novas responsabilidades atribuídas. Uma interpretação restritiva, como a adotada pelo TCA Norte, enfraquece, como já vimos, o processo de descentralização ao não garantir os recursos financeiros necessários para a execução das competências transferidas. Logo, tomar essa posição pode gerar insegurança jurídica e administrativa, tanto para os municípios, que dependem desses recursos para cumprir as suas funções, quanto para os trabalhadores envolvidos, que podem ser prejudicados pela falta de clareza quanto aos responsáveis pelos encargos com saúde e rescisões de contratos.
Conclusão
A decisão do Supremo Tribunal Administrativo de admitir a revista é acertada, pois a questão envolve uma matéria de grande complexidade jurídica e de relevância social fundamental. A interpretação do nº7 da cláusula 2ª do contrato de execução nº 248/2009 deve ser analisada à luz dos princípios constitucionais da descentralização administrativa e da autonomia financeira das autarquias locais, que são essenciais para garantir uma administração pública eficiente e previsível. A revisão da decisão do TCA Norte deverá, portanto, levar em consideração esses princípios, procurando uma interpretação mais alinhada com os objetivos da descentralização aqui analisada, presente no artigo 6º da CRP.
Bibliografia:
- AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo Vol. II, Almedina
- SILVA, Vasco Pereira da, Aulas Teóricas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2024.
[1] Veja-se o Decreto-Lei nº144/2008, de 28 de julho, artigos 2º, nº1, alínea a); 2º, nº2 e 12º.
[2] Por descentralização entende-se o desempenho das funções do Estado por uma pluralidade de pessoas coletivas, em vez de por uma só pessoa (ideia retirada das aulas teóricas do professor Vasco Pereira da Silva).
[3] AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo Vol. II, Almedina.
[4] Nesta medida, veja-se o artigo 4º da Lei nº 159/99, de 14 de setembro, "transferência de atribuições e competências para as autarquias locais".
Trabalho realizado por: Maria Luísa Valadares, nº66620, 2ºano, turma B, Subturma 12