Comentário ao acórdão STA 10551/13 de 25-09-2014 – Inês Pinto

30-11-2024

Este acórdão, proferido pela 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul, versa sobre um recurso interposto por Águas do Zêzere e Côa, S.A. contra o despacho saneador do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Castelo Branco, que considerou que não existia uma causa prejudicial no que respeitava à ação nº 450/11.7BECTR e que o sistema multimunicipal de abastecimento de água não era ilegal. O recurso também questiona diversas questões relativas à validade do sistema e à inclusão de águas pluviais na fatura de fornecimento de água e serviços de saneamento. O Tribunal, após análise do recurso, decidiu conceder-lhe provimento e revogar a decisão recorrida, determinando a suspensão da instância até que a questão prejudicial fosse resolvida.

O processo original foi instaurado pelas Águas do Zêzere e Côa, S.A. contra o Município do Sabugal, com o objetivo de receber os pagamentos pelas faturas de fornecimento de água e saneamento de efluentes, num contexto em que o Município alegava que o sistema multimunicipal, que inclui o Município da Covilhã, era ilegal e que as faturas estavam incorretas, especialmente no que respeitava às águas pluviais.

A ação foi marcada por várias questões controversas:

  1. Legalidade do sistema multimunicipal: A parte recorrente argumentava que a inclusão do Município da Covilhã no sistema, bem como a forma como as águas pluviais eram faturadas, não era legal.
  2. Exclusão das águas pluviais nos contratos: O recorrente sustentava que as águas pluviais não estavam incluídas nos contratos de fornecimento de água e de saneamento e que, por isso, as faturas com a cobrança dessas águas eram inválidas.
  3. Aferição do volume de água e efluentes e o pagamento de faturas: A alegação de que as quantidades de água e efluentes medidos estavam incorretas e que a medição dos contadores não era adequada à realidade dos consumos foi uma das principais questões levantadas.
  4. Revisão das tarifas: A parte recorrente questionava ainda a revisão das tarifas e se o despacho que as atualizou tinha eficácia retroativa, sem a aprovação prévia necessária.

Análise do Despacho do tribunal

O Tribunal, no despacho, fez um conhecimento antecipado de várias questões, como a legalidade do sistema multimunicipal, a medição de água e efluentes, a revisão das tarifas e a constitucionalidade da taxa de recursos hídricos. O recorrente argumentou que o Tribunal havia errado ao considerar que tais questões eram "indiferentes" para a decisão da ação. O Tribunal do TAF de Castelo Branco, ao adotar uma abordagem de saneamento parcial do mérito, limitou-se a uma análise superficial de algumas questões, sem considerar a relevância da nulidade dos contratos e a ilegalidade do sistema multimunicipal como uma questão central que deveria ser tratada com mais profundidade.

Uma das principais críticas do recorrente foi que o Tribunal não havia considerado a causa prejudicial que envolvia a pendência da ação nº 450/11.7BECTR, que questionava a validade do contrato de concessão que sustentava os contratos de fornecimento de água e tratamento de efluentes. O recorrente alegou que, enquanto a validade desses contratos não fosse decidida, a instância deveria ser suspensa.

O Tribunal, ao não reconhecer esta causa prejudicial, prosseguiu com o julgamento da ação, abordando parcialmente o mérito, sem resolver as questões mais profundas relacionadas com a legalidade do sistema e a validade dos contratos. O recorrente também destacou que a decisão de considerar "indiferentes" as questões sobre a medição da água e a faturação não era válida, pois estas eram controvertidas e essenciais para a resolução da causa.

O Tribunal, por sua vez, considerou que o serviço prestado deveria ser pago independentemente da legalidade do sistema ou da exatidão da medição, o que implicava uma decisão em que a questão de fundo, que envolvia a validade dos contratos e do sistema, não estava devidamente analisada.

Decisão do Tribunal

O Tribunal Central Administrativo Sul, ao analisar o recurso, considerou que o despacho recorrido estava errado em várias frentes. Em primeiro lugar, o Tribunal não reconheceu corretamente a causa prejudicial, ao não suspender a instância até que a questão da validade do contrato de concessão fosse resolvida. O Tribunal também errou ao considerar que a legalidade do sistema multimunicipal e das faturas eram questões "indiferentes" para o caso, pois elas estavam diretamente ligadas à causa de pedir da ação, ou seja, ao fundamento jurídico da reclamação do pagamento.

A decisão de dividir o conhecimento do mérito da causa em dois momentos (saneador e final) foi considerada inadequada, uma vez que as questões debatidas no saneador estavam intimamente ligadas ao mérito da ação e deveriam ser decididas conjuntamente, no julgamento final, após a instrução do processo.

Assim, o Tribunal revogou a decisão recorrida, determinando a suspensão da instância até que a causa prejudicial fosse resolvida e ordenando que o processo fosse reiniciado, com a análise completa das questões subjacentes.

Comentário

A decisão proferida pelo Tribunal Central Administrativo Sul parece acertada ao reconhecer a necessidade de suspender a instância até que as questões fundamentais sobre a validade dos contratos e a legalidade do sistema multimunicipal sejam decididas. Esta abordagem respeita os princípios da economia processual e da coerência jurídica, evitando a repetição de julgamentos contraditórios e assegurando que o mérito da causa seja devidamente apreciado. Ao dividir o conhecimento da causa em duas partes, o Tribunal de primeira instância corre o risco de comprometer a imparcialidade e a eficácia do julgamento final, sem garantir que todas as questões pertinentes sejam completamente investigadas.

A questão da inclusão das águas pluviais nas faturas é um exemplo claro de como a matéria factual e contratual não pode ser tratada de forma superficial. A exclusão ou não das águas pluviais nos contratos de fornecimento é uma questão que não pode ser considerada irrelevante, pois impacta diretamente na veracidade das faturas emitidas e no montante que deve ser pago. O Tribunal de primeira instância, ao desconsiderar essa alegação como irrelevante, falhou ao não reconhecer a importância de apurar a verdade material do que foi efetivamente acordado nas condições contratuais.

A revisão das tarifas e a questão da constituição da taxa de recursos hídricos também são temas fundamentais que precisam ser tratados em profundidade. O Tribunal, ao ter dado por irregulares ou irrelevantes estas questões, comprometeu-se com uma análise incompleta do contexto em que os pagamentos estavam a ser reclamados. A decisão do Tribunal Central Administrativo Sul, ao anular a decisão de primeira instância, resolve esta falha, restabelecendo o rigor processual necessário.

Em termos de jurisprudência, este caso oferece uma lição importante sobre o tratamento das questões prejudiciais, a relação entre causas conexas e a divisão do mérito no processo judicial. Em processos complexos, como o presente, onde há alegações de ilegalidade de contratos e questionamentos sobre a base das faturas emitidas, é fundamental que o juiz não apenas decida superficialmente, mas que encare as questões de fundo, com a análise integral das provas e dos fundamentos jurídicos que sustentam os pedidos de cada parte.

BIBLIOGRAFIA

Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Ato Administrativo Perdido

Sérvulo Correia, Francisco Paes Marques, Noções de Direito Administrativo - Volume I

Carlos Blanco Morais, Curso de Direito Constitucional

Fernando Baptista de Oliveira, O Conceito de Consumidor - Perspetivas Nacional e Comunitária

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