Comentário ao Acórdão STA 02/04/2025 - Maria Inês Silva
Comentário ao Acórdão de 02/04/2025 (Processo nº 0450/22.1BEVIS), do Supremo Tribunal Administrativo
No presente acórdão é elaborado um recurso de revista [1] interposto pelo Ministério Público, atuando junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, recorrendo à sua decisão, na qual este tinha decidido julgar procedente a ação administrativa especial proposta por um cidadão (ou entidade), anulando o ato administrativo praticado pela Administração Tributária.
- Para tal, o Ministério Público funda-se num erro de julgamento quanto à apreciação da prova e ao enquadramento jurídico dos factos, alegando que o AF de Viseu fez uma errada valoração dos factos e aplicou de forma incorreta o direito aplicável, nomeadamente no que respeita à validade do ato tributário em causa.
Seguindo o manual do professor Freitas do Amaral, o próprio mostra como o Ministério Público tem legitimidade para intervir em processos administrativos sempre que esteja em causa a defesa da legalidade administrativa, a proteção de interesses difusos ou coletivos, ou sempre que a lei o determine (nomeadamente, em matéria tributária e financeira).
Esta decisão anterior versa sobre uma contribuinte, AA, que beneficiava de um atestado médico de incapacidade multiusos emitido em 2015, que lhe atribuía uma incapacidade permanente global de 60%. No entanto, em 2021, após reavaliação, foi-lhe atribuído um novo atestado com um grau de incapacidade de 27%. Perante esta situação, a AT indeferiu o pedido de averbamento do grau de 60% no cadastro do contribuinte, alegando que a nova avaliação, inferior ao limiar legal, era fiscalmente irrelevante.
O recurso levanta várias questões jurídicas relevantes, nomeadamente quanto às divergências em relação à interpretação das normas aplicáveis, e ao próprio princípio do tratamento mais favorável, presente no art. 4º-A do Decreto-Lei n.º 202/96
- O princípio visa proteger os direitos adquiridos dos cidadãos portadores de deficiência, evitando que reavaliações conduzam à perda de benefícios anteriormente reconhecidos — designadamente, em sede fiscal
A Autoridade Tributária argumenta quanto ao desrespeito dos artigos 13º e 103º da CRP, quanto ao princípio da igualdade e da legalidade, especialmente no que diz respeito à manutenção dos benefícios fiscais em situações de reavaliação da incapacidade, juntamente com o princípio da unicidade do ordenamento jurídico
- Entende que, se este atendimento vingar, poderá, numa situação limite, onde mais de metade da população ativa portuguesa, pelo simples facto de em determinado momento da sua vida ter padecido de doença que lhe conferiu um grau de incapacidade igual ou superior a 60%, e não obstante ter entretanto recuperado, deixe de pagar impostos, abalando, desta forma, o próprio sistema fiscal
Contrariamente, a recorrente, AA, sustenta que a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, que concedeu a manutenção do grau de incapacidade de 60%, não está em consonância com as normas legais aplicáveis:
- A Recorrente contesta a interpretação dada aos n.º 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, especialmente após a introdução das alterações pela Lei n.º 80/2021. A sua argumentação sugere que a manutenção dos benefícios fiscais em situações de reavaliação deve ser limitada às circunstâncias em que haja uma alteração substancial nos critérios de avaliação, o que não ocorre no caso da Recorrida, já que a avaliação foi feita com base na mesma Tabela Nacional de Incapacidades [2].
- A Recorrente argumenta ainda que a Lei n.º 80/2021, que introduziu o artigo 4.º-A ao Decreto-Lei n.º 202/96, tem uma natureza meramente interpretativa, o que implica que não pode ser utilizada para prorrogar indefinidamente os direitos adquiridos sem que os requisitos legais estejam preenchidos.
- Identifica também que, embora o princípio do tratamento mais favorável seja um direito do contribuinte, não pode ser utilizado para perpetuar os benefícios fiscais sem que os pressupostos legais estejam preenchidos. O recurso sublinha que o princípio não pode ser aplicado de forma que desconsiderem as melhorias no estado clínico do contribuinte, o que implicaria um tratamento discriminatório em relação a outros contribuintes.
Dito isto, um dos pontos mais controversos do recurso diz respeito ao impacto social e jurídico que a manutenção do entendimento do Tribunal a quo teria. AA argumenta que a decisão poderia criar desigualdades injustificáveis e, em última instância, prejudicar a repartição justa dos rendimentos e a sustentabilidade do sistema fiscal, uma vez que se poderia criar uma situação em que uma parte significativa da população passaria a não pagar impostos devido à atribuição de benefícios fiscais baseados em incapacidades anteriormente superiores a 60%.
Perante a argumentação da outra parte, a Autoridade Tributária e Aduaneira alega que a interpretação dos números 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, não pode resultar na manutenção de um grau de incapacidade superior ao efetivamente constatado pela junta médica na reavaliação, se os critérios de avaliação forem os mesmos [3]. Sublinha, portanto, que o grau de incapacidade deve ser ajustado à nova avaliação médica, uma vez que a situação clínica pode ter evoluído, e a manutenção do grau anterior de incapacidade em situações de reavaliação pode gerar distorções injustificáveis no sistema de benefícios fiscais.
- Além disso, a Autoridade argumenta que a aplicação do princípio do tratamento mais favorável, embora relevante, não pode ser estendido a ponto de perpetuar benefícios fiscais que já não se justificam com base na atual condição do contribuinte, o que se alinha com a necessária equidade fiscal e a preservação da viabilidade do sistema tributário.
Assim, o Procurador-Geral Adjunto emite o seu parecer, observando que, embora as avaliações de incapacidade tenham sido realizadas à luz da mesma Tabela Nacional de Incapacidades (TNI), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, as normas de revisão ou reavaliação da incapacidade, estabelecidas no Decreto-Lei n.º 202/96, na sua versão modificada pela Lei n.º 80/2021, ainda se aplicam. Portanto, a principal questão aqui é a aplicação do princípio da "avaliação mais favorável ao avaliado", que se traduz na manutenção do grau de incapacidade mais favorável ao utente, mesmo que uma reavaliação posterior indique um grau inferior.
- Reforça que, independentemente da nova avaliação (que fixou o grau de incapacidade em 27%), o grau de incapacidade de 60% fixado inicialmente deve prevalecer, uma vez que a patologia permanece a mesma e a alteração do grau de incapacidade resulta numa perda de direitos para a Recorrida. Assim, a Autoridade Tributária (AT) deve considerar o grau de incapacidade de 60% para efeitos de benefícios fiscais.
- E mais, sugere que as decisões anteriores do Tribunal Central Administrativo do Norte estão corretas, ao aplicar corretamente a legislação vigente e ao reconhecer a necessidade de aplicar o princípio da avaliação mais favorável ao avaliado - este princípio impede que o grau de incapacidade seja reduzido de forma a prejudicar a Recorrida, assegurando a continuidade dos benefícios fiscais.
Para concluir, o acórdão reafirma a interpretação mais favorável da legislação, sustentando que a Autora deve continuar a beneficiar da avaliação de incapacidade de 60%, em conformidade com o entendimento do Tribunal Central Administrativo Norte e com a jurisprudência consolidada. O Supremo Tribunal Administrativo valida esta linha de interpretação, reforçando a proteção dos direitos dos cidadãos com deficiência e garantindo a manutenção dos benefícios fiscais concedidos.
Assim, por este meio, este acórdão do STA reforça a aplicação do princípio do tratamento mais favorável na reavaliação do grau de incapacidade, garantindo a proteção dos direitos adquiridos dos cidadãos com deficiência.
[1] Previsto no art. 150º CPTA, por estar em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental .
[2] Portanto, a atribuição de um grau de incapacidade inferior ao grau anteriormente certificado, no caso da Recorrida, é irrelevante para a manutenção dos benefícios fiscais que vem usufruindo porque trata-se de um grau de incapacidade inferior que respeita à mesma patologia clínica (cancro mamário), caso em que se mantém o grau/resultado da avaliação anterior. Ou seja, apesar do grau de desvalorização atribuído à Recorrida ter diminuído, a doença patológica mantém-se e AA continua a ser portadora de uma deficiência que é certificada pela Junta Médica.
[3] O próprio acórdão menciona esta interpretação mais restritiva dos n.º 7 e 8 do artigo 4.º por parte da Administração Tributária, o que resultou na cessação de benefícios fiscais para algumas pessoas com deficiência. O legislador, ao alterar o Decreto-Lei n.º 202/96, com a Lei n.º 80/2021, procurou clarificar e reafirmar o princípio da avaliação mais favorável.
Bibliografia:
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, 4ª edição, 2018
MACHADO, João Batista, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 2017
OTERO, Paulo, Direito do Procedimento Administrativo I, Almedina, 2016
SILVA, Vasco Pereira da, Aulas Teóricas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2025
Trabalho realizado por Maria Inês Silva, Turma B, Subturma 12.