Comentário ao Acórdão STA 01/06/2023 - Maria Inês Silva
Comentário ao Acórdão de 01/06/2023 (Processo nº 02748/13.0BEPRT), do Supremo Tribunal Administrativo
O acordão retrata um recurso de revista para o STA, interposto pela INFARMED [1] e pela Associação Nacional das Farmácias (ANF) na sequência de uma decisão do Tribunal Central Administrativo Norte que deu parcial provimento à ação da A... – Associação Mutualista. Está em causa a possibilidade de abrir novas farmácias privativas por entidades do setor social, à luz do Decreto-Lei n.º 307/2007, na redação da Lei n.º 16/2013, após o Acórdão n.º 612/2011 do Tribunal Constitucional.
- Deparamo-nos, portanto, com um exemplo paradigmático da forma como o Supremo Tribunal Administrativo articula a jurisprudência constitucional com os limites da competência legislativa e com os princípios estruturantes do Estado de Direito Democrático.
Perante o caso concreto, para contexto, em 2013, a autora (uma entidade do sector social) requereu ao INFARMED o licenciamento e emissão de alvará para funcionamento de uma farmácia social. O pedido foi indeferido pelo INFARMED com base no regime do DL n.º 307/2007, que exigia que apenas sociedades comerciais podiam ser proprietárias de farmácias.
A ação administrativa especial interposta pela autora foi julgada improcedente com fundamento no Acórdão do STA de 05/07/2018 (Proc. n.º 0879/17), que validava a atuação do INFARMED à luz do regime então vigente.
- Com o sucedido, o TCA Norte anulou o ato impugnado com fundamento na violação do princípio da proibição do excesso, ligado ao art. 2.º e 63.º/5 CRP. Juntamente, ordenou ao INFARMED a reapreciação do pedido ao abrigo do DL n.º 307/2007, com exclusão da exigência de constituição de sociedade comercial, aplicando supletivamente o n.º 4 da Base II da Lei n.º 2125 e os art. 45.º, n.º 2 e 46.º do DL n.º 48547
Dito isto, a questão jurídica central baseia-se em entender se o INFARMED, após a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral (Acórdão n.º 612/2011 do TC), estava ou não obrigado a reapreciar o pedido da autora à luz de um quadro legal que admitisse a propriedade de farmácias por entidades do sector social sem necessidade de se constituírem em sociedades comerciais.
Antes de mais, a INFARMED invoca o art. 150.º, n.º 1 do CPTA, alegando a relevância social e jurídica da questão, justificando a admissibilidade do recurso. O objetivo deste prende-se com a intenção de estabelecer se o atual regime (DL 307/2007, com a redação da Lei 16/2013) permite ou não a abertura de novas farmácias privativas.
Para tal, a INFARMED sustenta-se na inexistência de base legal para abrir novas farmácias privativas ao abrigo do DL 307/2007 - Admite que, terminantemente, O Acórdão 612/2011 do Tribunal Constitucional não confere esse direito, apenas afastou a obrigação de transformação para farmácias já existentes.
- Deste modo, conclui que a interpretação do tribunal recorrido ameaça o equilíbrio do setor e a distribuição de medicamentos.
Efetivamente, a relevância jurídica da intervenção deste Supremo Tribunal passa também pela correção da interpretação errada que se tem feito do Acórdão n.º 612/2011 proferido pelo Tribunal Constitucional:
O Acórdão não declarou inconstitucional a impossibilidade de abertura de novas farmácias privativas, mas apenas a exigência de transformação em sociedades comerciais para farmácias já existentes - As entidades do setor social podem manter a titularidade de farmácias de oficina sem necessidade de se transformarem em sociedades comerciais.
- Qualquer novo pedido de farmácia privativa carece de base legal, violando o princípio da legalidade [2].
Mais além, INFARMED critica o acórdão recorrido, sublinhando como a interpretação do TCA Norte compromete o interesse público na distribuição equitativa de medicamentos, e acrescenta quanto à adesão simbólica a entidades do setor social para obter medicamentos compromete o regime restrito das farmácias privativas
- De facto, existem muitos pedidos de abertura de farmácias privativas, frequentemente objeto de litígios a serem decididos em tribunal
- A proliferação destas farmácias ao abrigo do DL 307/2007, conforme resulta do Acórdão ora recorrido – compromete/coloca em causa a sustentabilidade das farmácias de oficina, distorcendo a concorrência, consubstanciado na boa distribuição de medicamentos e serviços farmacêuticos pela população e pelo território
Portanto, desta argumentação é possível retirar que com o DL 307/2007 não foi previsto qualquer regime específico para novas farmácias privativas e que o regime foi orientado para um mercado concorrencial, com liberalização da propriedade das farmácias de oficina:
- "A intenção do legislador com o novo Regime Geral das Farmácias de Oficina era liberalizar parcialmente a propriedade das farmácias de oficina, no quadro de um mercado concorrencial, de forma criar condições para que o a propriedade de farmácias de oficina fosse um negócio atrativo, para assim garantir a boa distribuição de farmácias pela população e pelo território" [3]
No mesmo sentido que INFARMED, a ANF mostra-nos que o recurso de revista é admissível e necessário para uma melhor aplicação do direito, por haver contradição jurisprudencial com o processo n.º 0879/17. Acrescenta, nos seus argumentos que o Tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento, assumindo erradamente a aplicação de normas declaradas inconstitucionais e atribuindo-lhes efeitos repristinatórios que não existem nem podem existir, violando os princípios da separação de poderes (art. 110.º da CRP) e da reserva legislativa.
Por sua vez, A... – Associação Mutualista formula contra-alegações no sentido da defesa da legitimidade das farmácias sociais - afirma que estas não ameaçam a viabilidade das farmácias comerciais, pois os medicamentos sujeitos a receita médica (MSRM) representam uma parte mínima dos lucros destas últimas.
- Mostra também como vendem medicamentos ao mesmo preço de aquisição e não concorrem deslealmente, apenas operando com margens mais baixas em cumprimento da sua missão social
- E conclui como estas estão sujeitas ao mesmo quadro normativo das farmácias comerciais, excetuando-se a forma jurídica (associativa, e não comercial) e a ausência de concurso público, dado que servem um público restrito — o seu substrato associativo
Na sua argumentação, funda-se na interpretação e aplicação normativa de alguns dos artigos do DL 307/2007, determinando que a atual legislação, se interpretada como limitativa, padece de inconstitucionalidade orgânica e ilegalidade, por carecer de autorização legislativa adequada.
No fundo, a Mutualidade pede a desaplicação de algumas normas do DL 307/2007 que impõem a forma societária/comercial ou a capitação - tal como fez o douto acórdão do TCA Norte aqui recorrido - na medida em que impõem às entidades do sector social que, no desempenho de funções próprias do seu escopo, constituam sociedades acesso à propriedade das farmácias, por violação do princípio da proibição do excesso ínsito no princípio do Estado de Direito (consagrado no artigo 2.º CRP), conjugado com o artigo 63º/5 CRP.
O Supremo Tribunal Administrativo conclui que o ato do INFARMED — ao recusar o pedido de abertura de uma nova farmácia privativa — não violou a decisão do Tribunal Constitucional, nem aplicou uma norma inconstitucional.
Recusa igualmente a alegada inconstitucionalidade material, defendendo que não há violação dos princípios constitucionais invocados (coexistência dos três sectores, proteção do sector social, proibição do excesso, etc.).
Dá, assim, provimento ao recurso do INFARMED, revoga o acórdão do Tribunal Central Administrativo e mantém a sentença do Tribunal Administrativo de Círculo, validando o indeferimento do pedido da autora.
[1] denominado Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde,
instituto público integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa, tem por missão regular e supervisionar os setores dos medicamentos e produtos de saúde em Portugal.
[2] Estipulado no art. 266º/2 CRP e no art. 3º/1 CPA.
[3] Citação retirada do próprio acórdão em análise.
Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso de, Teoria Geral do Direito Administrativo, 8ª edição, 2021
AMARAL, Diogo Freitas do, Curso de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, 4ª edição, 2018
SILVA, Vasco Pereira da, Aulas Teóricas, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2025
Trabalho realizado por Maria Inês Silva, Turma B, Subturma 12.