Comentário ao Acórdão N.º 01188/02 STA de 18/06/2003 - Madalena Gomes
Comentário ao Acórdão N.º 01188/02 do Supremo Tribunal Administrativo, de 18/06/2003
Descrição do Caso em juízo:
No acórdão sub judice as empresas "A…, S.A" e "…,S.A" interpuseram recurso da sentença do Tribunal Admirativo e de Círculo do Porto (TACA Porto), que julgou improcedente a ação por elas movida contra o Estado Português. Na ação, os recorrentes pediam uma indemnização por prejuízos decorrentes de atos praticados no âmbito do processo de privatização do "…" (instituição financeira).
O litígio baseia-se portanto na alegada violação de compromissos assumidos pelo Estado durante o processo de privatização, que teriam induzido as empresas a intervir com base em expectativas legítimas. As recorrentes argumentam que os atos do Estado violaram portanto os princípios da boa-fé, da proteção da confiança e igualdade, danificando significativamente as suas participações.
A pretensão indemnizatória das recorrentes foi rejeitada, mesmo sob a óptica da responsabilidade pré-contratual, ou seja, por violação dos deveres de boa-fé e confiança durante as negociações, nos termos do art.º 227º do Código Civil. O tribunal concluiu que o Estado Réu não infringiu tais deveres, não havendo violação da boa-fé ou do princípio da confiança, e, consequentemente, as expectativas criadas não eram passíveis de indemnização.
Dada a ausência de fundamento para responsabilidade pré-contratual, não se considerou necessário analisar o tipo de prejuízos indemnizáveis (nomeadamente no que diz respeito ao interesse contratual negativo ou positivo). Como tal, ficaram prejudicadas várias conclusões do recurso relacionadas a danos e nexo de causalidade. O STA manteve a sentença recorrida, negando provimento ao recurso.
O QUE AO DIREITO DIZ RESPEITO:
Tendo presente o caso descrito, sem prejuízo das demais questões que se possam colocar, cabe focar as atenções na análise da relação entre o princípio da boa-fé e os princípios da tutela da confiança, proporcionalidade e igualdade, enquanto objeto de estudo na cadeira de Direito Administrativo I.
A Constituição, na sua revisão de 1997, adicionou ao respectivo art.266.º/2 o princípio da boa-fé, recebido no Direito Administrativo por meio do Direito Civil, nomeadamente pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo. A circunstância de se estar no âmbito do Direito Público não retira relevância a tal princípio que assume, também nesta sede, elevada expressão e valor.
A importância transversal da tutela da confiança impõe-se como decorrência do "macroprincípio" do Estado de Direito Democrático (art.2.º CRP), que, por sua vez, origina os demais princípios "em cascata".[1]
Ora, a consagração do princípio da boa-fé vertida no art. 10.º CPA veio salvaguardar a tutela das legítimas expectativas do particular quanto a uma determinada decisão ou conduta da Administração Pública. Existe, deste modo, uma relação intrínseca entre a tutela da boa-fé e a salvaguarda da tutela da confiança legítima.
O problema que se colocou neste caso foi precisamente o escrutínio daquilo que se afigura "legítimo" salvaguardar. O Tribunal determinou – e bem – a propósito daquilo que as recorrentes vieram alegar, que as "meras expectativas fáticas não são juridicamente tuteladas". Quer isto dizer que, apesar de o princípio da boa-fé ser visto sob duas vertentes importantes - a confiança depositada pelo administrado é protegida em todas as formas e fases da atividade administrativa e o particular terá de se comportar de modo leal e correto para com esta - não deixa de ser exigível, para a protecção das expectativas, que se verifiquem todos os pressupostos necessários à aplicação do princípio da tutela da confiança.
Ou seja, a confiança que os particulares tinham nunca poderia ter surgido como consequência de um qualquer ilícito anterior – como o foi no acórdão em causa. É necessário, como foi defendido pelo juiz, que haja uma adequação ao Direito, não sendo admissível que alguém tente prevalecer-se ou beneficiar de um qualquer ato ilegal.
Este princípio tem como principal missão a previsibilidade e não contrariedade da atividade administrativa.
Vejamos, assim, em que é que isto consiste.
Em primeiro lugar, a boa fé Administrativa demanda que a Administração Pública aja de forma leal, transparente e previsível em relação aos particulares. Não obstante, este princípio não é absoluto, deverá, então, ser harmonizado com outros princípios como o da legalidade na prossecução do interesse público.
O tribunal, neste sentido, reconhece que, se houver uma alteração nas condições ou circunstâncias em que a Administração tomou uma decisão anterior, ela pode legitimamente rever os critérios inicialmente assumidos. Isto é, a Administração não está, de modo rígido, vinculada a decisões passadas, especialmente se as mudanças que pretender nelas introduzir se revelarem necessárias para atender ao interesse público prosseguido.
Em segundo lugar, a atuação da Administração deve ser proporcional, ou seja, ajustada aos fins que pretende alcançar (recaindo nas suas 3 componentes: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido restrito). Indo mais além, associado à proporcionalidade importa convocar o princípio da intervenção mínima, isto é, a Administração deverá reduzir ao mínimo a sua interferência nos direitos dos particulares, intervindo apenas na estrita medida necessária para alcançar os objetivos do interesse público. Este princípio tem por finalidade garantir um equilíbrio entre o interesse público e os direitos dos indivíduos, atuando como um mecanismo de controlo e garantia que previne excessos da Administração.
Aqui chegados, cumpre entender que à luz do caso concreto, o tribunal afirma que a Administração Pública, ao rever/adaptar os seus critérios, não infringiu o princípio da boa-fé. Pelo contrário, agiu dentro do seu poder discricionário para reavaliar a situação à luz de novas circunstâncias, escolhendo para isso medidas proporcionais que se revelaram menos prejudiciais aos particulares.
CONCLUSÃO:
A proteção da confiança, tem sido judicialmente invocada como fundamento de invalidade de atos administrativos. Um pouco como acontece no caso em apreço.
No entanto, na mesma linha de raciocínio que adotada pelo STA neste caso, essa invocação não deve proceder quando a confiança a proteger não se mostre legitimada por condições objetivas e juridicamente relevantes, não sendo suficiente para tanto uma mera expectativa subjetiva dos particulares.
Resta, assim, acompanhar a decisão do STA, já que para que o princípio da tutela da confiança fosse aplicável, seria necessário que os atos da Administração tivessem criado, de forma consistente e legítima, uma expectativa sólida, que não poderia ser contrariada sem justo motivo. No caso em apreço, o tribunal corretamente entendeu corretamente que a atuação da Administração, ajustada a novas circunstâncias e em consonância com o interesse público, não gerou compromissos inequívocos capazes de sustentar tal tutela, reforçando, assim, a prevalência dos princípios da legalidade e proporcionalidade.
[1] Para posição sustentada pelo Tribunal Constitucional quanto a este assunto vide JORGE MIRANDA/ RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, III, 2.ª Edição, Universidade Católica Editora, pp. 506.