Comentário ao Acórdão I Processo: 0692/05 I Maria Inês Neves
Comecemos por analisar os problemas em destaque no presente acórdão, começando então pela matéria de facto.
A acórdão analisa a fundamentação do ato administrativo que ordenou o embargo de obras no município de Águeda. Destaca-se inicialmente o erro na identificação do ato recorrido uma vez que o tribunal de 1ª Instância confundiu o mandado de embargo, correspondente a um ato de execução, com o verdadeiro despacho decisório que ordenou o embargo.
O Supremo Tribunal Administrativo corrige este lapso e esclarece que o levou ao despacho em causa.
Assinala-se ainda a omissão de factos relevantes uma vez que a sentença recorrida não considerou que o despacho no concernente ao "Autue-se e embarguem-se as obras" foi exarado sobre a própria informação dos serviços de fiscalização, que indicavam concretamente as desconformidades entre as obras realizadas e os projetos aprovados, como os afastamentos inadequados em relação às vias públicas, configurando-se assim imprescindível compreender a base fática da decisão.
Afigura-se ainda necessário debater a validade de fundamentação per relationem, na medida em que importa compreender se o ato estava suficientemente fundamentado com base na informação subjacente, algo que o STA concluiu que sim, pese embora não existisse uma remissão expressa no despacho.
Por fim, no que concerne ao erro na apreciação na matéria de facto que conduziu o tribunal de 1ª Instância a declarar a nulidade do ato administrativo por falta de fundamentação, compreendemos que após a devida correção factual, o Supremo vem a revogar esta decisão considerando o ato como devidamente fundamentado e remetendo o processo para que este apreciasse os vícios invocados.
Analisemos agora a matéria de direito controvertida.
No acórdão em apreço a análise incide em compreender se a fundamentação do ato administrativo cumpre o dever legal de fundamentação ao qual a Administração se sujeita, conforme o disposto no art. 152º do CPA e no art. 268º, nº3 da CRP. A sentença recorrida considerou que não havia fundamentação adequada dado a inexistência de uma declaração expressa de concordância com a informação técnica, algo que consoante a jurisprudência dominante se afigura como imprescindível para que a fundamentação per relationem seja válida.
O Supremo Tribunal Administrativo entendeu, portanto, que, apesar da ausência de remissão expressa, o contexto em que o despacho foi proferido era suficiente para se pronunciar pela validade da fundamentação per relationem, por se encontrar exarada diretamente a informação técnica detalhada e por considerar que as razões de facto e de direito eram acessíveis e compreensíveis para o destinatário do ato.
Neste âmbito, o debate centra-se na validade da fundamentação per relationem baseada apenas constância da informação no despacho em apreço. Eis que o STA entendeu flexibilizar a interpretação tradicional, aceitando assim que o contexto e a evidência documental bastassem para satisfazer o dever de fundamentação, mesmo que não existisse fórmula expressa de remissão.
Desta forma, compreendemos que acórdão reforça uma interpretação substancial do dever de fundamentação, defendendo que esta não exige necessariamente uma formulação formalista, desde que o contexto do ato permita ao destinatário identificar claramente os seus fundamentos.
Importa então fazer uma breve explicação relativa ao dever de fundamentação dos atos administrativos.
O dever de fundamentação dos atos administrativos, consagrado no art. 268.º, n.º 3 da CRP e detalhado no CPA, é uma garantia essencial dos direitos dos particulares. A sua ausência pode tornar o ato anulável (art. 163.º CPA), mas a doutrina e alguma jurisprudência mais recente — como o Acórdão do STA de 07/04/2022 — sustentam que, quando está em causa o núcleo essencial de um direito fundamental, a nulidade pode ser a consequência adequada (art. 161.º, n.º 2, al. d) CPA). Esta perspetiva ganha força com o reconhecimento da fundamentação como direito fundamental, também protegido pelo direito internacional (art. 41.º, n.º 2, al. c) da CDFUE). A posição tradicional, que considera apenas a anulabilidade, mostra-se cada vez mais frágil face à necessidade de garantir coerência entre o valor formal do procedimento e a proteção efetiva dos direitos dos administrados.
Cabe por último analisar a decisão tomada pelo tribunal a quo e compreender se esta decisão se alicerça na doutrina tradicional.
A decisão do tribunal a quo, o Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, consistiu na anulação do despacho de embargo emitido pela Câmara Municipal de Águeda, por considerar que o mesmo padecia de vício de forma, por falta de fundamentação adequada. Este tribunal interpretou de forma estritamente formalista o dever de fundamentação previsto no artigo 152.º do CPA e no artigo 268.º, n.º 3 da Constituição, exigindo uma declaração expressa e inequívoca de concordância com a informação técnica subjacente. Rejeitou, assim, a validade da fundamentação per relationemimplícita, entendendo que a simples menção do despacho sobre a informação não bastava. Como consequência, declarou o ato inválido. Esta posição foi posteriormente contrariada pelo Supremo Tribunal Administrativo, que defendeu uma interpretação mais material e contextual da fundamentação, considerando suficiente o enquadramento do despacho na informação técnica, mesmo sem remissão expressa.
Face ao exposto e alinhado com o que a jurisprudência do STA e a doutrina maioritária tem entendido considero admissível a opção por uma interpretação mais contextual e menos formalista da fundamentação e, por esse motivo, reitero a decisão do STA, reforçando ainda que o desvalor a aplicar em casos como o caso em apreço seria a nulidade e não a anulabilidade, conforme defendi acima.
Link de acesso ao Acórdão sujeito a análise:
https://www.dgsi.pt/jsta.nsf//7b8b9509c35b5919802570c0004d4c5e?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1
Bibliografia consultada:
AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo Vol. II, 2º Ed., 2014, Almedina.
ALMEIDA, Mário Aroso de. Teoria Geral do Direito Administrativo. 2º Ed., 2015, Almedina.
ANDRADE, José Carlos Vieira de, O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Tese de Doutoramento, Almedina, Coimbra, 1991