Comentário ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (nº00853/17.3BEBRG) - Alexandre Mira
Introdução - O conceito de discricionariedade administrativa
Nos atos administrativos, é comum coexistirem elementos vinculativos e outros que conferem discricionariedade, formando um contínuo entre essas duas esferas. Isso decorre, primeiramente, do princípio da legalidade que rege a administração pública, segundo o qual esta só pode atuar mediante autorização legal expressa (conforme o artigo 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa). Todavia, há situações em que a lei estabelece apenas o objetivo e os órgãos responsáveis, deixando a execução da decisão à apreciação da administração, que pode assim ajustar suas escolhas conforme o interesse público e a eficácia da atuação.
Marcello Caetano, uma referência clássica, via o poder discricionário como uma exceção à legalidade, um espaço reservado ao livre arbítrio do Estado. Hoje, essa visão é pouco consensual; predomina a ideia de que a discricionariedade opera estritamente dentro dos limites da lei — posição que adotamos e sustentamos neste estudo.
Na prática, seria inviável e mesmo contraproducente que a lei regulasse de maneira exaustiva todas as decisões administrativas. Como aponta Vasco Pereira da Silva, o legislador não pode pretender antecipar todas as possibilidades concretas que se apresentam no dia a dia. A administração, conhecedora das realidades locais e das necessidades sociais, necessita dessa margem de autonomia. Porém, o perigo reside no abuso dessa liberdade, que pode se transformar em arbitrariedade, desconsiderando os princípios que devem orientar toda a atuação pública. É exatamente esse ponto que vamos explorar, por meio da análise de um acórdão relevante.
Análise do Acórdão (nº 00853/17.3BEBRG)
O caso em exame versa sobre exames realizados por uma junta médica da Caixa Geral de Aposentações (CGA), configurando um exemplo de discricionariedade técnica — isto é, decisões fundamentadas em critérios técnicos especializados, no caso, médicos. A questão central é se o poder discricionário conferido à administração pode ser sujeito a controle judicial, e sob quais circunstâncias.
Em dezembro de 2014, o autor sofreu um acidente de trabalho, caindo em um buraco e sofrendo lesões múltiplas, conforme relatórios médicos. Contudo, a CGA não teria incluído todas essas lesões nos seus documentos, configurando-se, segundo o aposentado, um vício por falta de fundamentação. A CGA reconheceu a discricionariedade técnica do caso, mas defendeu que as lesões foram devidamente consideradas, negando qualquer erro.
O tribunal, contudo, considerou procedente a reclamação e anulou o ato administrativo, determinando a reavaliação com fundamentação adequada, dada a omissão de menção a certas lesões que deveriam ser ponderadas.
Em recurso, a CGA sustentou que o parecer médico da junta está fora do âmbito de revisão do tribunal, por exigir conhecimentos técnicos que este não possui, e que o controle judicial só se justificaria em casos de erro manifesto ou arbitrariedade flagrante.
O autor do recurso, por sua vez, citou precedente do mesmo tribunal, defendendo que, embora o poder discricionário não possa ser suprimido pela Justiça, esta tem o dever de exigir o cumprimento dos requisitos legais e formais, como a devida fundamentação.
O tribunal concluiu que a insuficiência da fundamentação configura uma violação legal, equiparável a erro grosseiro, e que, apesar da discricionariedade técnica, o controle judicial não viola a separação dos poderes, pois se limita a garantir o respeito aos parâmetros legais.
Assim, o recurso foi rejeitado, reafirmando a necessidade de adequada motivação nos atos administrativos, mesmo quando decorrentes de juízos técnicos.
Conclusão
A discricionariedade administrativa consiste na possibilidade, conferida por lei, de escolher entre várias opções lícitas, mas nunca pode ser confundida com arbitrariedade. Esta última se caracteriza pela ausência de base legal e motivação adequada, enquanto a primeira exige ambos.
É fundamental harmonizar o respeito pela lei com a autonomia decisória da administração, sempre orientada pelo interesse público. Conforme lembra Sérvulo Correia, o administrador deve ser capaz de avaliar a situação concreta e prever as consequências de suas decisões, buscando a melhor prossecução do interesse coletivo.
Não se pode desprezar o papel dos tribunais, que exercem uma fiscalização essencial para evitar abusos e assegurar um sistema equilibrado de poderes, com mecanismos legítimos de controle.
A jurisprudência atual aceita que o controle judicial se justifica quando os atos administrativos apresentam erros evidentes. O acórdão analisado exemplifica essa atuação, mostrando que, mesmo na discricionariedade, a legalidade prevalece.
Em suma, a discricionariedade não é uma mera liberdade administrativa, mas sim um poder condicionado, dotado de deveres e limites jurídicos claros.
Bibliografia
DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo (Vol. II), Almedina, Coimbra, 2ª edição, 2011,
MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, O princípio da legalidade e a margem de livre decisão administrativa, Direito Administrativo Geral (Tomo I), Editora D. Quixote, 3ª edição,