Comentário ao Acórdão do TCAN, Processo 00532/04.1BEVIS, 1º secção do Contencioso Administrativo - Inês Godinho
Neste comentário pretendo analisar o acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, confirmado pelo Tribunal Central Administrativo que visa tratar da responsabilidade civil extracontratual da Administração Publica por atos lícitos, com base no artigo 9º do Decreto-Lei nº 48 051/67.
O litígio em causa neste acórdão trata da realização de obras com vista ao alargamento e pavimentação de uma via municipal do Município de Oliveira de Azeméis e à freguesia de César, no entanto, no normal decorrer das mesmas, a autarquia acaba por proceder ao corte e supressão da rampa de acesso à propriedade de A, rampa esta que esta que se encontrava construída sobre a via municipal o que consequentemente originou um impedimento ao acesso ao imóvel de A afetando o uso normal da propriedade.
Assim, o que se visa analisar neste acórdão é o recurso das recorrentes, ou seja, das autarquias, devido ao julgamento de 1ª instância do TAF de Viseu que julgou tratar-se de um caso de responsabilidade civil por ato culposo, nos termos do artigo 2º do DL 48 051/67. Perante isto o TCNA acaba por corrigir a primeira sentença considerando tratar-se de um caso de responsabilidade civil por ato lícito, nos termos do artigo 9º, por se tratar de uma obra realizada dentro do exercícios das competências legais bem como pelo dano causado ser considerado especial e anormal por apenas afetar um único cidadão.
Deste modo, é imperativo expor a matéria relativa à responsabilidade civil extracontratual da administração pública.
A responsabilidade civil da administração refere-se à obrigação jurídica que recaí sobre qualquer pessoa coletiva pública de indemnizar os danos que tiver causado aos particulares, seja no exercício da função administrativa, seja no exercício de atividades de gestão privada[1],[2], esta ainda tem um lugar específico na constituição presente no artigo 22º da mesma.
A responsabilidade civil extracontratual da Administração publica traduz-se numa tentativa de reposição das situações iniciais dos particulares, através da reparação ou eliminação do dano real, implicando desta maneira uma indemnização e não uma compensação. Esta é assim uma reação do direito a danos causados a particulares seja por factos ilícitos, por risco ou por factos lícitos, desde que ocorram na medida que sejam justificáveis.
O termo "civil" nesta senda não se refere a nenhum ramo de direito, mas sim ao facto de tratar responsabilidades que provocam perdas e/ou danos, não sendo por isso se regulados pelas regras de direito civil, mas sim antes pelo direito administrativo na maioria dos caos, contudo traduz-se da mesma forma na obrigação de indemnizar os prejuízos causados pela Administração aos particulares.
Da responsabilidade extracontratual por atos de gestão publica resultam 5 modalidades:
- Responsabilidade por ação ou omissão ilícita e culposa praticada pelos titulares de órgãos de administração, seus funcionários, agentes ou representantes;
- Responsabilidade no âmbito do procedimento de formação de certos contratos administrativos;
- Responsabilidade por funcionamento anormal de serviço;
- Responsabilidade pelo risco;
- Responsabilidade por ato lícito;
Contudo antes de prosseguirmos para a análise desta modalidade de responsabilidade extracontratual é fulcral atender à origem da rampa geradora de várias dúvidas, de modo a identificar sobre qual das modalidades estamos presentes. Para o município, nos termos do artigo 62º do Regulamento Geral das Estradas e Caminhos municipais, a rampa, por não se encontrar licenciada, é considerada como ilegal e precária não sendo assim suscetíveis de recessão de indemnização, o que tornaria a ação da Administração pública um ato lícito. É nesta última que nos iremos focar, mas antes é necessário qualificarmos ao ato em analise realizado pelo Administração publica como lícito.
Assim, antes de prosseguirmos para a consideração do TCAN acerca deste assunto é preterível que analisemos o regime da responsabilidade civil por atos lícitos da administração pública.
Este regime está previsto em Portugal desde o Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de novembro de 1967, em que a partir deste o legislador adotou uma perspetiva mais ampla utilizando a designação de "indemnização pelo sacrifício", além disso o artigo 16º do RCEEP[3] afirma que:
"O Estado e as demais pessoas coletivas de direito público indemnizam os particulares a quem, por razões de interesse público, imponham encargos ou causem danos especiais e anormais, devendo, para o cálculo da indemnização, atender-se, designadamente, ao grau de afetação do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado."
Assim a indemnização do dano pode resultar de:
- uma violação de um direito ou interesse – somente neste caso existe responsabilidade civil fundada na justificação de um ato, positivo ou negativo, ilícito, visto que ocorre uma to danoso que seria a partida ilícito, no entanto por haver uma causa de justificação não se torna como tal, por exemplo, atos tidos num período de estado de necessidade;
- Um sacrifício de um direito ou interesse – neste caso está em causa um mero problema de compensação de um sacrifício;
O legislador acerca deste problema ainda teve de delimitar aquilo que era considerado como "especialidade" e "anormalidade", nesse sentido surgiu o artigo 2º do RCEEP.
Assim, no caso concreto o TCAN considera que mesmo a rampa sendo considerada como precária, a intervenção da Administração pública constituiu um sacrifício desproporcional ao autor afetando a sua normal utilização da sua propriedade, ou seja, o seu gozo standard. Não obstante tudo isto, da mesma forma a atuação da administração pública também foi tida de acordo com os paramétrios legais, ou seja, em conformidade com as competências atribuídas por lei para o melhoramento da via publica, o que faz surgir assim, um ato lícito de gestão publica o que se traduz numa responsabilidade civil da administração publica por ato lícito, artigo 9º do Decreto-Lei supramencionado.
Não podemos esquecer das exigências que este artigo acarreta, ou seja, assim para que este seja aplicado o ato em analise deve ser legal, o que acontece uma vez que a obra em questão é considerada licita e realizada pelo interesse publico, é necessário ainda estarmos perante uma situação especial, não sofrida pela generalidade dos cidadãos, que ocorra um dano anormal ( ou seja não se traduz num dano comum – aqueles que genericamente recaem sobre todos os cidadãos ou categorias abstratas e amplas de pessoas, o que acontece uma vez que atraves da ação da Admnistração pública doi criado um entrave à normal utilização da propriedade de A e que haja um nexo de causalidade entre as duas exigências referidas.
Concluindo, o tribunal nega o recurso das autarquias e afirma que ilegalidade do ato não afasta automaticamente a obrigação de indemnização desde que estejam preenchidos o artigo 9º do REE verificando-se assim obrigação de indemnização por prejuízos especiais e anormais. Deste modo, alarga-se a proteção dos particulares reforçando-se o equilíbrio entre o interesse publico e os direitos dos cidadãos.
Bibliografia:
- Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III
[1] Estudos de Direito Publico e matérias Afins, vol I, Diogo Freitas de Amaral, Almedina, Coimbra, 2004, p.509 e ss
[2] Marcello Caetano, Manual II, p. 1195 e ss
[3] Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais entidades públicas