Comentário ao Acordão do TCA Sul (Proc. 2176/11.2BELSB) - Constança Pinto
Acórdão de 20/06/2024 (Proc. 2176/11.2BELSB), Relator Eliana Pinto, do Tribunal Central Administrativo Sul
No presente comentário, debruçamo-nos perante um recurso apresentado por um professor cuja nomeação definitiva foi declarada nula pelo Diretor-Geral dos Recursos Humanos da Educação, em 2011. O professor tinha exercido funções docentes durante cerca de 13 anos, sem que a Administração tivesse questionados as suas habilitações. Com base nestes factos, intentou ação para anular o despacho de nulidade, alegando diversos vícios jurídicos, os quais foram todos rejeitados pela sentença de 1.ª instância – decisão que agora recorre.
I. Objeto do comentário
Em concreto, analisa-se a fundamentação jurídica à qual o tribunal recorreu para julgar improcedentes os vícios apontados ao despacho impugnado – mormente, a invocação do abuso de direito sob a forma de venire contra factum proprium e a alegada omissão do dever de informação e audição prévia. Procura-se, portanto, perceber se ocorreu uma articulação entre os princípios constitucionais da tutela da confiança, da boa-fé administrativa, da legalidade e da participação procedimental, e avaliar se a interpretação do tribunal é coerente com os princípios fundamentais do Estado de Direito democrático.
II. Sobre a decisão: quanto à aplicação do princípio da boa-fé
O princípio da boa-fé (art.266.º/2 CRP e art.6.º-A CPA) postula a ponderação dos "valores fundamentais do direito, relevantes em face das situações consideradas", concedendo-se especial importância à "confiança suscitada na contraparte pela atuação em causa" e ao objetivo a alcançar com a atuação empreendida". A ideia geral desta autonomização foi satisfazer a "necessidade premente de criar um clima de confiança e previsibilidade no seio da Administração Pública". A boa-fé determina a tutela das situações de confiança, que dependem da verificação de quatro pressupostos: (i) situação de confiança, (ii) justificação para essa confiança, (iii) investimento da confiança e (iv) imputação da confiança.
A invocação do princípio do abuso de direito na vertente do venire contra factum proprium (consubstanciada pelo facto de a Administração ter mantido o recorrente ao serviço durante 13 anos sem questionar a sua situação habilitacional) foi afastada com base na inexistência de um comportamento administrativo claramente contraditório. O tribunal entende que a omissão de fiscalização durante vários anos não constitui um "factum proprium" suficiente para gerar uma expectativa juridicamente protegida. No entanto, esta interpretação revela-se rígida: comportamentos administrativos prolongados no tempo, ainda que omissivos, podem consolidar a confiança legítima de um particular, sobretudo quando o Estado se encontra numa posição assimétrica de poder e informação, como é o caso da relação entre docente e Ministério da Educação. Efetivamente, atendendo à matéria de facto todos os pressupostos da tutela da confiança se encontram verificados:
- O docente exerceu funções durante mais de 13 anos sem que a Administração questionasse a validade das suas habilitações. Foi reiteradamente contratado, nomeado e remunerado.
- O comportamento omissivo e tolerante da Administração, num contexto de aparente regularidade, justificava objetivamente a convicção do docente de que reunia os requisitos legais.
- O docente construiu a sua carreira, planeou a sua vida profissional e renunciou a outras oportunidades com base na estabilidade da sua posição.
- A confiança gerada resultou diretamente da atuação (ou inércia) da própria Administração, que teve sempre acesso aos documentos e nunca alertou para qualquer irregularidade.
Apesar de todos os pressupostos estarem reunidos para a aplicação da tutela da confiança com base na boa-fé administrativa, o tribunal entendeu que o dever de legalidade (por se tratar de ato vinculado) prevalece. Esta interpretação revela uma leitura restritiva da boa-fé e levanta a questão de saber se, num Estado de Direito, a legalidade formal deve anular por completo os efeitos jurídicos de uma confiança objetivamente fundada e imputável ao próprio Estado.
III. Sobre a decisão: quanto ao dever de audiência prévia
A questão da audiência prévia no procedimento administrativo continua a suscitar intensas divergências doutrinárias, sobretudo no que respeita à sua natureza jurídica e às consequências decorrentes da sua omissão. A jurisprudência e a doutrina dividem-se entre considerar a audiência prévia como uma mera formalidade legal essencial, cuja omissão origina anulabilidade do ato (art. 163.º CPA), ou como uma garantia procedimental com dignidade constitucional, cuja preterição acarreta nulidade (art. 161.º, n.º 2, alíneas d), g), h) e l) CPA).
No acórdão em análise, o tribunal rejeitou a alegada violação do direito de audiência prévia com base no art. 163.º, n.º 5, al. a) do CPA, defendendo que, tratando-se de um ato vinculado, a audiência poderia ser dispensada, uma vez que o seu conteúdo seria inevitavelmente o mesmo. Esta aplicação do princípio do aproveitamento do ato administrativo, amplamente aceite pela jurisprudência, permite validar atos procedimentalmente viciados quando se conclui, com segurança, que a audiência não teria influenciado o resultado final.
Contudo, esta leitura, embora dominante, não é isenta de crítica. O Professor Vasco Pereira da Silva sustenta que o direito de audiência prévia, consagrado no art. 267.º, n.º 5 da CRP, constitui um verdadeiro direito fundamental procedimental, abrangido pela cláusula de não tipicidade dos direitos fundamentais (art. 16.º CRP). Para este autor, a preterição da audiência afeta o conteúdo essencial do direito de defesa do administrado, devendo ser qualificada como nulidade (art. 161.º CPA), e não como mera anulabilidade. Esta posição é partilhada por autores como Sérvulo Correia e Marcelo Rebelo de Sousa, que consideram a audiência prévia um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias.
O Professor Paulo Otero adota uma visão intermédia, reconhecendo na audiência prévia uma exigência do princípio do procedimento equitativo. Embora também a considere um direito com relevância constitucional, admite que a violação possa conduzir tanto à anulabilidade como à nulidade, consoante a gravidade do vício e o impacto nos direitos do particular.
Em contraponto, Freitas do Amaral defende que o direito de audiência prévia é um direito meramente legal, cuja função é reforçar a legalidade e a transparência do procedimento, mas que não atinge, por si só, a dignidade de direito fundamental. Por isso, entende que a sua preterição gera apenas anulabilidade. A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem seguido maioritariamente esta linha. No acórdão de 16-10-2002 (proc. n.º 0941/02), entendeu-se que a omissão da audiência prévia constitui um vício procedimental que não afeta diretamente a esfera jurídica do particular, salvo quando a decisão final ofende o conteúdo essencial de um direito fundamental — caso em que poderá então ser invocada nulidade.
No caso concreto, o docente alegou que não teve qualquer oportunidade de se pronunciar sobre os factos e fundamentos determinantes da cessação da sua nomeação, sendo apenas solicitado a apresentar documentos. A Administração, durante 13 anos, nunca sinalizou qualquer irregularidade quanto às suas habilitações, o que reforça a necessidade de um tratamento mais exigente da questão da audiência prévia. A aplicação automática do princípio do aproveitamento do ato, sem uma ponderação contextualizada do caso concreto, parece ignorar princípios fundamentais como a boa-fé, o contraditório e o dever de lealdade procedimental.
Com efeito, o simples pedido de documentos não substitui uma verdadeira audiência prévia nos termos do art. 100.º CPA, onde o administrado deve ser informado dos factos apurados e do sentido provável da decisão. O direito à audiência é um mecanismo de controlo democrático da Administração, prevenindo arbitrariedades e garantindo a participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes dizem respeito.
Assim, a posição adotada pelo tribunal, ao desvalorizar a ausência da audiência prévia, revela-se questionável do ponto de vista jurídico-constitucional, e, à luz da doutrina de Vasco Pereira da Silva, potencialmente inconstitucional. Trata-se de um acórdão tecnicamente sustentado, mas que ilustra os limites da abordagem formalista na proteção dos direitos procedimentais dos administrados.
Em síntese, sendo o princípio da participação um dos pilares da atividade administrativa, qualquer restrição ao direito de audiência deve ser excecional, rigorosamente fundamentada e proporcional. A sua preterição, sobretudo quando afeta a posição jurídica consolidada de um particular, deve ser tratada como vício grave, com regime de nulidade, de forma a evitar a consolidação de atos administrativos lesivos e reforçar a legitimidade da atuação pública.
IV. Bibliografia e Webgrafia
FREITAS DO AMARAL, D. (2020). Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª ed., Almedina, Coimbra.
- REBELO DE SOUSA, M., & SALGADO DE MATOS, A. (2007). Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, Lisboa.
- CORREIA, José Manuel Sérvulo; MARQUES, Francisco Paes. Noções de direito administrativo. Almedina, 2021