COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO TCA SUL DE 21/03/24 - Francisco Pinto

27-05-2025

COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL DE 21 DE MARÇO DE 2024 (PROC. 2237/20.6BELSB)


I. Contextualização Factual e Jurídica


O acórdão em análise versa sobre a revogação de uma decisão de concessão de financiamento público, no âmbito de uma relação jurídico-administrativa contratual. A entidade pública fundamentou a revogação na alegada violação de cláusulas contratuais pela beneficiária. A questão central prende-se com a validade da decisão administrativa de revogação, à luz dos princípios do procedimento administrativo e das garantias dos particulares. 


II. Enquadramento Legal: Artigo 163.º, n.º 5 do CPA


O artigo 163.º, n.º 5 do Código do Procedimento Administrativo (CPA) consagra o princípio do aproveitamento do ato administrativo, estabelecendo que não se produz o efeito anulatório quando: 


a) O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permitir identificar apenas uma solução como legalmente possível; 


b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via; 


c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo. 



Este preceito visa evitar a anulação de atos administrativos quando o vício identificado não tenha influenciado o conteúdo decisório do ato, promovendo a economia processual e a estabilidade das relações jurídicas. 


III. Aplicação ao Caso Concreto


No caso em apreço, a decisão de revogação do financiamento foi tomada sem a prévia audiência da interessada, o que constitui uma violação do princípio do contraditório e do direito de audiência prévia, consagrados nos artigos 121.º e 122.º do CPA. A omissão desta formalidade essencial levanta a questão da validade do ato administrativo praticado. 


Contudo, o tribunal entendeu que, mesmo com a omissão da audiência prévia, o conteúdo da decisão não poderia ser outro, dado que a beneficiária incumpriu de forma objetiva e comprovada as cláusulas contratuais que condicionavam a manutenção do financiamento. Assim, aplicando o artigo 163.º, n.º 5, alínea a), do CPA, considerou-se que o ato de revogação não deveria ser anulado, por se tratar de um ato vinculado, cujo conteúdo era legalmente único possível face aos factos apurados. 


IV. Análise Crítica e Doutrinária


A aplicação do princípio do aproveitamento do ato administrativo, nos termos do artigo 163.º, n.º 5 do CPA, é uma matéria que tem suscitado discussão doutrinária relevante. Vasco Pereira da Silva entende que este preceito deve ser interpretado com cautela, por representar uma exceção à regra da anulabilidade dos atos viciados. Sublinha que, sendo o vício de natureza procedimental, como a omissão da audiência prévia, a sua relevância não pode ser desvalorizada, dado que tal formalidade visa salvaguardar os direitos fundamentais dos particulares, nomeadamente o direito ao contraditório.


Segundo este autor, a não produção do efeito anulatório prevista no artigo 163.º, n.º 5 exige uma demonstração clara e inequívoca de que o vício não teve qualquer influência no conteúdo do ato — uma exigência que impõe um “juízo contrafactual rigoroso”, difícil de sustentar em muitos casos . Assim, defende que apenas em situações absolutamente evidentes, como atos de conteúdo integralmente vinculado e com vícios meramente formais, poderá admitir-se o aproveitamento.


No caso em apreço, embora a decisão administrativa tenha sido considerada vinculada, a ausência de audiência prévia impede, segundo esta linha de raciocínio, a aferição segura de que o conteúdo da decisão não teria sido outro. A posição de Vasco Pereira da Silva, portanto, sugeriria uma maior reserva quanto à aplicação do artigo 163.º, n.º 5 neste contexto, priorizando a garantia dos direitos procedimentais do administrado.


V. Conclusão


O acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul ilustra a aplicação do princípio do aproveitamento do ato administrativo em situações onde a decisão administrativa é vinculada e a omissão de formalidades procedimentais não teria influenciado o conteúdo do ato. Embora esta aplicação promova a eficiência administrativa, deve ser ponderada com rigor, garantindo que não se comprometam as garantias fundamentais dos administrados. A jurisprudência e a doutrina alertam para a necessidade de um juízo cuidadoso sobre a relevância do vício identificado, assegurando que a aplicação do artigo 163.º, n.º 5 do CPA não se traduza na erosão dos direitos procedimentais dos particulares. 

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