Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 2/2014 - Júlia Portela

25-05-2025

O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) n.º 2/2014, de 21 de março, versa sobre uma temática nuclear do Direito Administrativo: o dever de fundamentação dos atos administrativos. A questão central sub judice prende-se com a validade de um ato administrativo praticado sem fundamentação suficiente, o que suscita uma análise jurídica quanto à sua conformidade com os princípios da legalidade, da tutela jurisdicional efetiva e do Estado de Direito democrático, vertidos na Constituição da República Portuguesa (CRP) e no Código do Procedimento Administrativo (CPA).


Questões de facto

O litígio tem origem num ato administrativo de indeferimento de um pedido apresentado por um administrado, ao qual a Administração respondeu com uma fórmula genérica e sem concreta referência aos pressupostos de facto e de direito subjacentes à decisão. A parte impugnante invocou a violação do artigo 124.º do CPA (na sua redação anterior à revisão de 2015, que era a que estava em vigor à data dos factos), alegando que tal ausência de fundamentação comprometeu o exercício do seu direito de defesa e o acesso à tutela jurisdicional efetiva, previstos nos artigos 20.º e 268.º, n.º 3 da CRP.


O dever de fundamentação: natureza e função

A exigência de fundamentação expressa dos atos administrativos constitui um elemento estruturante do procedimento administrativo. Tal como sublinha o Professor Freitas do Amaral, "a fundamentação serve de garantia do administrado, assegurando o seu direito à informação, o controlo jurisdicional dos atos administrativos e a racionalidade das decisões públicas" (Curso de Direito Administrativo, vol. II, Almedina, 2020, p. 435).

Do ponto de vista constitucional, o artigo 268.º, n.º 3 da CRP consagra o dever de fundamentação como uma garantia da boa administração e do controlo democrático da Administração Pública. Já do ponto de vista legal, o CPA, nos seus artigos 152.º e seguintes (nova numeração), exige que a fundamentação seja clara, suficiente e permita ao destinatário compreender as razões da decisão.

Para o Professor Sérvulo Correia, a fundamentação dos atos administrativos não se limita a um formalismo estéril, antes se insere na "estrutura dialógica do procedimento", enquanto manifestação do princípio da justiça administrativa. A ausência ou insuficiência da fundamentação corresponde, na sua visão, a um vício essencial, pois afeta o núcleo de garantias do administrado e compromete a legitimidade democrática da Administração.


A jurisprudência do STA no acórdão sub judice

O STA entendeu que a fundamentação apresentada era deficiente, por não conter qualquer alusão concreta aos elementos de facto e de direito subjacentes à decisão administrativa. Esta decisão alinha-se com um entendimento consolidado na jurisprudência segundo o qual "a ausência de fundamentação, ou uma fundamentação meramente aparente, configura vício de forma suscetível de gerar a anulabilidade do ato administrativo" (cf. Acórdão do STA de 14.12.2010, Proc. n.º 0485/10).

Contudo, o acórdão de 2014 reforça o caráter essencial da fundamentação ao sublinhar a sua ligação com a tutela jurisdicional efetiva: sem ela, não é possível sindicar judicialmente o mérito da decisão administrativa, o que desvirtua a própria possibilidade de impugnação.


Consequências jurídicas: nulidade ou anulabilidade?

A ausência de fundamentação enquadra-se, em regra, no regime da anulabilidade (art. 163.º do CPA), como sublinha o Professor Freitas do Amaral, exceto nos casos em que tal ausência afete diretamente um direito fundamental.

Quando a ausência de fundamentação afeta diretamente direitos fundamentais, pode configurar nulidade, nos termos do artigo 162.º, n.º 2, alínea d), do CPA, pois: "A inobservância das formalidades que constituem o núcleo essencial dos direitos do administrado implica nulidade do ato" (Colaço, 2010, p. 15).

A posição do STA neste acórdão aproxima-se desta última linha de raciocínio, valorizando o impacto material da falta de fundamentação no plano das garantias constitucionais.


Conclusão

O Acórdão n.º 2/2014 constitui uma referência doutrinal e jurisprudencial fundamental sobre o dever de fundamentação dos atos administrativos, reafirmando a centralidade deste dever como corolário do Estado de Direito. A articulação entre doutrina e jurisprudência aponta para uma Administração vinculada à racionalidade, à transparência e ao respeito pelos direitos dos administrados.

A análise do acórdão permite, ainda, sublinhar a importância da densificação do conteúdo da fundamentação, enquanto elemento essencial do procedimento e da própria legalidade do ato, constituindo um tema de especial relevo na formação de qualquer jurista da Administração Pública.


Bibliografia

FREITAS DO AMARAL, D. (2020). Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª ed., Almedina, Coimbra.

CORREIA, J. C. S. (2004). Direito Administrativo: Temas Essenciais, Almedina, Coimbra.

CAUPERS, J. P. (2016). Introdução ao Direito Administrativo, Âncora, Lisboa.

COLAÇO, A. (2010). " mistério da nulidade do ato administrativo", Revista do Ministério Público, n.º 123.


Júlia Portela, nº 71661, STB12 

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