Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo n.º 0392/08 - Júlia Portela
O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) n.º 0392/08, de 25 de junho de 2008, versa sobre o direito fundamental à audiência prévia do administrado antes da emissão de atos que lhe possam causar prejuízo. Este direito é reconhecido como expressão do princípio do contraditório e constitui uma garantia essencial para a defesa dos direitos dos cidadãos no âmbito do procedimento administrativo, estando consagrado no artigo 121.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA) e no artigo 267.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Sumário do Acórdão
O Tribunal decidiu que a violação do direito de audiência prévia, quando não se enquadra nas exceções legais que permitem a sua dispensa, configura uma preterição de formalidade essencial que determina a ilegalidade do ato administrativo e, por isso, a sua anulabilidade. A decisão destaca que tal formalidade só pode ser dispensada se a decisão fosse inevitavelmente a mesma, nomeadamente em casos de atos vinculados ou puramente aritméticos. No caso em apreço, existindo dúvida sobre a área do prédio que motivou uma nova medição, não se podia concluir que a audição prévia fosse inútil, pelo que a sua omissão implicou a nulidade do ato de liquidação fiscal.
Enunciação da matéria de facto
O litígio teve origem na prática de uma liquidação fiscal baseada numa segunda medição da área de um prédio, que divergia da anterior. A Administração não concedeu à interessada audiência prévia antes de emitir esta nova liquidação. A impugnante alegou violação do direito de audiência prévia, previsto no artigo 121.º do CPA, e sustentou que a ausência dessa formalidade comprometeu o seu direito à defesa.
O direito à audiência prévia: natureza e função
A audiência prévia é uma manifestação do princípio do contraditório, assegurando a participação do administrado no procedimento, com a oportunidade de se pronunciar sobre os factos e fundamentos jurídicos que podem conduzir à tomada de uma decisão que lhe seja desfavorável. Conforme destaca Marcelo Rebelo de Sousa, "a audiência prévia é uma formalidade essencial do procedimento administrativo, integradora do princípio da boa-fé e da justiça administrativa" (Direito Administrativo Geral, Tomo III, 2007, p. 128).
A doutrina de Sérvulo Correia reforça que a audiência prévia garante a "possibilidade real de defesa" e "consolida a legitimidade da decisão administrativa, inserindo-a num processo dialógico e transparente" (Direito Administrativo: Temas Essenciais, 2004, p. 210).
Do ponto de vista constitucional, o artigo 267.º, n.º 5 da CRP, impõe a garantia da participação do administrado, traduzida na audiência prévia, como meio de assegurar o Estado de Direito democrático e o direito ao contraditório.
A jurisprudência do STA no acórdão n.º 0392/08
O STA enfatiza que a audiência prévia só pode ser dispensada em situações específicas previstas na lei, nomeadamente quando a decisão for inevitavelmente aquela que vier a ser tomada, como ocorre em decisões vinculadas ou meramente aritméticas (artigo 60.º, n.º 2 e 3 da LGT). No caso, existia divergência sobre a área do imóvel, tornando a audição prévia essencial para que a interessada pudesse influenciar a decisão.
O Tribunal concluiu que a preterição desta formalidade essencial traduz uma violação que determina a anulabilidade do ato administrativo, reforçando a ideia de que a ausência de audiência não pode ser relevada salvo se a sua realização fosse manifesto ato inútil, o que não ocorreu.
Este entendimento está alinhado com o princípio do devido processo e com precedentes do Tribunal Constitucional que vinculam o direito à audiência prévia como garantia estruturante da legalidade do ato (Acórdãos n.º 407/94 e 555/08).
Consequências jurídicas: nulidade ou anulabilidade?
A omissão do direito de audiência prévia, salvo quando se verifiquem as exceções legais, é qualificada como vício de forma essencial. Nos termos do artigo 163.º do CPA, tal vício determina a anulabilidade do ato administrativo, exigindo a sua impugnação para efeitos de controlo judicial. A doutrina de Freitas do Amaral esclarece que "a audiência prévia constitui uma formalidade essencial cuja ausência compromete a validade do ato, mas não afeta o seu conteúdo essencial, o que justifica a regra da anulabilidade" (Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2020, p. 456).
Conclusão
O Acórdão do STA n.º 0392/08 é uma referência jurisprudencial relevante que reafirma a centralidade do direito à audiência prévia no processo administrativo, não só como garantia dos direitos do administrado mas também como pilar da legitimidade das decisões administrativas. Sublinha a necessidade de respeitar as formalidades essenciais e reforça a limitação da dispensa do direito à audiência prévia aos casos taxativamente previstos em lei, com reflexos diretos no princípio do contraditório e na boa administração pública.
Este acórdão contribui para a consolidação do entendimento jurídico acerca da importância da participação do administrado e é essencial para a formação e prática do Direito Administrativo.
Bibliografia
FREITAS DO AMARAL, D. (2020). Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª ed., Almedina, Coimbra.
CORREIA, J. C. S. (2004). Direito Administrativo: Temas Essenciais, Almedina, Coimbra.
REBELO DE SOUSA, M., & SALGADO DE MATOS, A. (2007). Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, Lisboa.
Júlia Portela, nº 71661, STB12