Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24 de junho de 2021 - Mariana Amorim

24-04-2025

O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 24 de junho de 2021 (processo 01519/10.0BELRA) constitui um marco relevante na afirmação de um modelo moderno de controlo jurisdicional da discricionariedade administrativa. Em causa estava a rejeição de uma candidatura a um sistema de incentivos por parte da Comissão Diretiva do COMPETE, com fundamento no alegado caráter não inovador do projeto. A Administração entendeu tratar-se de uma candidatura meramente modernizadora, não elegível. O STA, no entanto, considerou que a decisão enfermava de erro na aplicação da lei, uma vez que os factos não foram devidamente subsumidos à norma.

Este comentário visa analisar os principais contributos do acórdão no que toca ao conceito de discricionariedade administrativa, aos limites do seu exercício, e ao papel dos tribunais na sua fiscalização. O caso é particularmente relevante por ilustrar a distinção entre discricionariedade e arbítrio, e por clarificar a possibilidade de controlo judicial mesmo sobre juízos técnicos da Administração.

A discricionariedade administrativa corresponde à margem de apreciação conferida pela lei à Administração, permitindo-lhe escolher entre diferentes soluções juridicamente admissíveis, em função da prossecução do interesse público. Esta margem pode incidir sobre a valoração de factos, sobre a interpretação de conceitos indeterminados ou sobre a escolha de meios para atingir fins legalmente fixados.

Todavia, esta liberdade de decisão não é ilimitada. O exercício da discricionariedade está sujeito a princípios estruturantes do Direito Administrativo, como a legalidade, a proporcionalidade, a imparcialidade e a boa fé. A Administração não age com liberdade absoluta, mas com responsabilidade, devendo fundamentar as suas decisões e respeitar os direitos dos particulares.

A distinção entre discricionariedade e arbítrio é crucial. O arbítrio traduz uma atuação infundada, caprichosa ou desvinculada de critérios legais. A discricionariedade, ao contrário, exige motivação, ponderação e respeito pelo quadro normativo. Quando a Administração invoca a discricionariedade para legitimar uma decisão arbitrária, incorre em ilegalidade e sujeita-se ao controlo jurisdicional.

No caso em apreço, a Comissão Diretiva do COMPETE fundamentou a rejeição da candidatura num juízo sobre a natureza do projeto. O STA entendeu, todavia, que a decisão não resultava de uma apreciação discricionária imune a controlo, mas de uma operação de subsunção jurídica, passível de sindicância judicial.

O controlo jurisdicional dos atos discricionários é uma expressão do princípio da legalidade e do Estado de Direito. Não se trata de substituir a Administração no juízo de oportunidade, mas de garantir que esta respeita os limites da lei. Os tribunais podem sindicar:

  1. A existência de erro manifesto na apreciação dos factos;
  2. O desvio de poder (uso do poder para fins ilegítimos);
  3. A violação de princípios gerais de direito (proporcionalidade, igualdade, imparcialidade);
  4. A incoerência interna ou falta de fundamentação adequada.

O STA considerou que, ao qualificar o projeto como meramente modernizador, a Administração não respeitou os critérios definidos no Aviso de Abertura e na Portaria n.º 1464/2007. O tribunal destacou que a qualificação da candidatura constituía um exercício de aplicação da norma aos factos e não uma opção discricionária imune a controlo. Nesse sentido, reafirma-se a possibilidade de revisão judicial sempre que a Administração ultrapassa os limites da legalidade.

Um dos ensinamentos mais relevantes do acórdão é a reafirmação do princípio da vinculação da Administração à lei. Mesmo quando dispondo de uma margem de apreciação, a Administração deve atuar segundo os critérios objetivos definidos pelos regulamentos e normas aplicáveis. Não existe um "cheque em branco" concedido à Administração. Toda a atuação deve ser justificável e sujeita a escrutínio.

Neste caso, a decisão da Comissão Diretiva foi anulada por erro na aplicação da lei. O STA confirmou que o projeto se enquadrava nas tipologias previstas, e que a rejeição não podia fundar-se numa interpretação excessivamente restritiva ou não fundamentada dos critérios legais.

Um ponto sensível, e que é bem tratado no acórdão, é a relação entre o controlo jurisdicional e o princípio da separação de poderes. O STA reafirma que o controlo judicial não invade a esfera de decisão política ou administrativa, desde que se limite a verificar a conformidade legal do ato. Os tribunais não substituem a Administração nos juízos de mérito, mas asseguram que os direitos dos particulares não são sacrificados por decisões ilegais.

Trata-se de uma visão moderna do contencioso administrativo, compatível com o modelo de Estado de Direito democrático, em que a Administração é responsável perante o direito e sujeita ao controlo dos tribunais.

Embora o acórdão não se debruce longamente sobre a técnica processual, a sua tramitação evidencia o funcionamento eficaz do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA). A interposição de recurso de revista, ao abrigo do artigo 150.º, permite o acesso à instância superior para garantir a correta aplicação do direito.

A referência ao artigo 3.º do CPTA, que define o âmbito de intervenção dos tribunais, mostra como este diploma equilibra a tutela efetiva dos direitos com o respeito pela autonomia da Administração. O contencioso administrativo moderno não visa substituir a Administração, mas garantir que esta age dentro da moldura legal e respeita os princípios do Estado de Direito.

Concluindo, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24 de junho de 2021 é um contributo relevante para a afirmação de um modelo de controlo jurisdicional exigente e garantístico da discricionariedade administrativa. Rejeita a ideia de uma Administração imune ao escrutínio judicial e reforça a centralidade dos princípios da legalidade, da vinculação à lei e da responsabilidade.

O caso analisado mostra como os tribunais podem, sem invadir a esfera administrativa, garantir a legalidade e a proteção dos direitos dos particulares. A jurisprudência aqui fixada valoriza a função do juiz administrativo como fiscal da legalidade e guardião dos princípios fundamentais do Direito Administrativo.

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