Comentário ao Acórdão do STA, Processo nº 01188/02 de 18/06/2003 - Inês Godinho
Esta análise do acórdão em questão serve para examinar o litígio ocorrido entre duas sociedades privadas e o Estado Português, relativamente à última fase do processo de reprivatização do Banco Português do Atlântico (BPA). Este acórdão aborda temas de grande relevância lecionados no âmbito da disciplina, como a responsabilidade extracontratual da Administração Pública — neste caso por atos ilícitos — e os princípios que regem o Direito Administrativo português.
As duas sociedades alegam que o Estado violou os princípios da boa-fé, da proteção da confiança e da legalidade ao alterar, na última fase do processo de reprivatização, o modelo originalmente previsto. Assim, o Estado substituiu uma venda por oferta pública de venda por uma venda direta lançada por uma entidade privada.
Torna-se, por isso, pertinente explicar os princípios que regem o Direito Administrativo e que são fulcrais não só para a dinâmica desta disciplina, mas sobretudo para a resolução de litígios concretos.
O princípio da boa-fé constitui inquestionavelmente um vetor geral de todo o ordenamento jurídico, estando consagrado na Constituição da República Portuguesa como princípio vinculativo da Administração Pública, nomeadamente no artigo 266.º, n.º 2. Esta consagração é densificada no artigo 10.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo (CPA), que dispõe que "no exercício da atividade administrativa e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa-fé". O n.º 2 do mesmo artigo explicita que o respeito por este princípio exige a ponderação dos valores fundamentais do Direito, atribuindo-se especial importância à confiança suscitada na contraparte pela atuação em causa, bem como ao objetivo a alcançar com a mesma.
A autonomização do princípio da boa-fé em sede de Direito Administrativo visou justamente satisfazer a necessidade de criar e preservar um clima de confiança e previsibilidade nas relações entre a Administração Pública e os particulares. Hoje, é pacífico que a Administração está igualmente obrigada a pautar a sua atuação por padrões de boa-fé, constituindo-se como modelo de conduta ética e jurídica perante os cidadãos.
A concretização do princípio da boa-fé ocorre, nomeadamente, através de subprincípios que dele irradiam, como o princípio da tutela da confiança legítima e o princípio da materialidade subjacente. O primeiro impõe à Administração o dever de proteger situações de confiança juridicamente fundadas; o segundo exige que a atuação administrativa se conforme, não apenas formal, mas também materialmente, aos fins que a legitimam.
É neste quadro que se compreende a alegação das sociedades requerentes de terem visto frustrada uma legítima oportunidade de aquisição do controlo de uma instituição bancária — oportunidade essa que, segundo sustentam, resultava do modelo de privatização inicialmente delineado e cuja alteração abrupta, por ato da Administração, violaria a confiança que legitimamente depositaram na atuação do Estado. Assim, invoca-se não apenas a violação do princípio da boa-fé em sentido estrito, mas também a frustração de expectativas fundadas, merecedoras de tutela jurídica à luz do ordenamento vigente.
Já o princípio da proteção da confiança, embora não tenha natureza absoluta, constitui uma garantia essencial no Direito Administrativo, aplicável apenas em situações específicas que justifiquem a sua invocação. Trata-se de um mecanismo destinado a assegurar a previsibilidade e a estabilidade das relações entre a Administração Pública e os administrados, sobretudo quando estes desenvolvem condutas fundadas em expectativas legítimas geradas pela atuação da própria Administração.
A sua tutela exige a verificação cumulativa de quatro pressupostos fundamentais, todos indispensáveis e sem qualquer hierarquia entre si: (i) a existência de uma situação de confiança, traduzida na boa-fé subjetiva do particular, que deve ter agido de forma diligente e honesta, acreditando legitimamente na manutenção da situação criada pela Administração; (ii) a justificação dessa confiança com base em elementos objetivos e plausíveis; (iii) o investimento dessa confiança, consubstanciado no desenvolvimento de condutas ou atividades jurídicas com base na expectativa gerada; e (iv) a imputação da situação de confiança à própria Administração, enquanto autora da atuação que induziu legitimamente o administrado a confiar.
A ausência de qualquer um destes requisitos inviabiliza a proteção jurídica da confiança, sendo imprescindível a sua verificação conjunta para que possa falar-se em violação do princípio e, eventualmente, em responsabilidade da Administração. Este princípio constitui uma concretização dos valores da boa-fé, da segurança jurídica e da justiça, exigindo da Administração uma atuação coerente e respeitadora das legítimas expectativas que suscita.
Outro princípio estruturante do Direito Administrativo é o da igualdade, consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei". Com raízes profundas no constitucionalismo português, desde a sua consagração original em 1821, este princípio evoluiu de uma conceção meramente formal — como exigência de aplicação uniforme da lei — para uma conceção material, que impõe que a própria lei, e não apenas a sua aplicação, consagre um tratamento equitativo.
Neste sentido, o princípio da igualdade vincula não só o legislador, mas também a Administração Pública e os tribunais (artigo 266.º CRP e artigo 6.º CPA), exigindo que situações de facto iguais sejam tratadas de forma igual e situações desiguais de forma diferenciada, na justa medida da diferença que as distingue. Deste princípio derivam duas dimensões fundamentais: a proibição de discriminação, enquanto vedação de distinções arbitrárias ou injustificadas; e a obrigação de diferenciação, que reconhece que a igualdade não é cega e requer um tratamento proporcional às particularidades de cada situação.
O princípio da proporcionalidade, por sua vez, constitui uma emanação essencial do Estado de Direito (artigo 2.º CRP), funcionando como limite material à atuação da Administração. Está consagrado em diversos preceitos constitucionais (nomeadamente artigos 18.º, n.º 2, 19.º, n.º 4, e 272.º, n.º 1), e especificamente no artigo 7.º do CPA. Este princípio exige que qualquer restrição de direitos ou interesses privados seja adequada, necessária e proporcional em sentido estrito face ao fim de interesse público visado.
Desta forma, a proporcionalidade desdobra-se em três dimensões: (i) a adequação, que exige que a medida seja idónea para atingir o fim proposto; (ii) a necessidade, que impõe a escolha da medida menos gravosa entre todas as adequadas; e (iii) o equilíbrio (ou proporcionalidade em sentido estrito), que exige que os benefícios esperados superem os custos impostos aos particulares. A ausência de qualquer uma destas dimensões compromete a legalidade da atuação administrativa.
Tendo em conta este enquadramento, importa considerar a responsabilidade civil extracontratual por atos de gestão pública — tradicionalmente designada como responsabilidade civil da Administração — que constitui a forma clássica de imputação de responsabilidade à Administração por comportamentos ilícitos e culposos de titulares de órgãos, funcionários, agentes ou representantes. Trata-se de uma responsabilidade de natureza subjetiva, com fundamento nos princípios gerais do Código Civil, e que exige a verificação cumulativa de cinco requisitos: (i) a prática de um facto voluntário, por ação ou omissão; (ii) a ilicitude do facto; (iii) a culpa do agente; (iv) a ocorrência de um prejuízo efetivo; e (v) a existência de um nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano. Apesar de inserida no domínio do Direito Administrativo, esta responsabilidade partilha os critérios e pressupostos do regime civilista.
Assim, e para concluir, as sociedades requerentes alegaram que o Estado violou uma expectativa legítima, criada por declarações públicas e compromissos assumidos anteriormente, ao alterar o modelo de venda previamente anunciado, violando desta forma os princípios da confiança e da boa-fé da Administração Pública. Contudo, o Supremo Tribunal Administrativo entendeu que as expectativas das sociedades eram de natureza estratégica ou empresarial, não gerando posições jurídicas subjetivas tuteladas por esses princípios.
Relativamente ao princípio da boa-fé, o STA entendeu que este apenas seria aplicável a expectativas políticas vinculativas, não tendo havido, no caso, qualquer comportamento do Estado que traduzisse um verdadeiro compromisso jurídico. Quanto ao princípio da proporcionalidade, o Tribunal considerou que a atuação do Estado visou o interesse público, designadamente a estabilidade do sistema financeiro, não se verificando qualquer desequilíbrio grave ou irrazoável entre o fim prosseguido e os efeitos produzidos. Por fim, rejeitou-se a existência de discriminação, uma vez que a decisão do Estado se baseou em critérios objetivos de interesse público, não violando o princípio da igualdade.
Deste modo, apesar da alegação de terem perdido uma legítima oportunidade de aquisição do controlo do banco e dos ganhos que dela poderiam resultar, o Supremo Tribunal Administrativo concluiu que não existiu qualquer ato de auto-vinculação ou criação de uma confiança jurídica protegida que tutelasse a posição das duas sociedades, não se verificando, assim, qualquer responsabilidade do Estado face às pretensões apresentadas.
Bibliografia:
- Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III