Comentário ao Acórdão do STA nº0386/22-6BELSB-A - Margarida Oliveira
Ao analisarmos o Acórdão de 27 de março de 2025, com o processo nº0386/22.&BELSB-A tomamos mais conhecimento sobre a admissibilidade da suspensão parcial da eficácia de atos administrativos no ordenamento jurídico português. O caso sob análise confronta a ANACOM, enquanto entidade reguladora independente, e a sociedade A…,S.A.., no âmbito de um processo cautelar que retrata sobre a suspensão parcial dos atos administrativos que atribuíram direitos de utilização de frequências de rádio, na medida em que foi imposta uma obrigação de negociações de acordos de roaming internacional.
Este litígio ultrapassa os contornos da relação bilateral entre regulador e regulado e acaba por se projetar sobre planos mais vastos, como o da conformação da atuação administrativa ao próprio princípio da legalidade; da densificação da tutela jurisdicional efetiva e ainda o da estruturação dogmática do próprio ato administrativo, mais concretamente a sua divisibilidade e a possibilidade de impugnação parcial.
No que toca à questão processual da admissibilidade, a ANACOM sustenta, que, sendo o conteúdo dos seus atos indivisível, uma vez que articula direitos e obrigações reciprocamente conexos, a suspensão parcial apenas das obrigações, no nosso caso, a imposição de negociar acordos de roaming é juridicamente inadmissível, uma vez que é alegado pela entidade que o pedido cautelar padece de inadmissibilidade processual por incidir sobre um efeito jurídico (inescindível - ver acordão) do conjunto do ato
O Supremo Tribunal Administrativo, contrariou esta tese, ao decidir que a eventual desconformidade da pretensão com a ordem jurídica, ou seja, a impossibilidade jurídica de satisfazer o pedido, não obsta à sua apreciação liminar, a fase de um processo que visa avaliar a regularidade e viabilidade de um pedido ou participação, mas deverá sim sim ser analisada na decisão de mérito. Esta situação representa uma afirmação clara da distinção entre a admissibilidade processual e procedência substancial, como foi abordado em aulas teóricas ao sublinhar-se que a admissibilidade diz respeito ao acesso à jurisdição e não à probabilidade de sucesso da pretensão.
Este entendimento do STA está alinhado com o art.20ºCRP e com o art.268º/4 da CRP, assegurando o direito à tutela jurisdicional efetiva dos particulares. Como foi abordado em aulas teóricas, o direito de ação não é absoluto, mas não pode ser desvirtuado por juízos liminares baseados em prognoses de improcedência.
No que toca à garantia de acesso ao direito, o juiz administrativo não é um mero aplicador mecânico da lei, mas também um intérprete da juridicidade que está incumbido de assegurar que a Administração atua em conformidade com o Direito. Isto quer dizer que não deve haver uma filtragem abusiva das pretensões deduzidas pelos administrados com base em critérios de legalidade substancial antecipada.
A ANACOM argumentou que os direitos atribuídos às operadoras, no quadro do leilão de frequências, formam um bloco normativo que não é possivel de se desvincular das obrigações que lhes foram impostas. A imposição de negociar sobre o roaming, no entender da entidade, integra o núcleo essencial do ato, indivisível por razões de coerência interna e equilíbrio entre concessões e encargos.
É refletido pelo STA que a divisibilidade do ato administrativo não depende exclusivamente da sua estrutura formal ou da intenção da Administração, mas sim da possibilidade jurídico-normativa de dissociar os efeitos produzidos, uma posição seguida pela doutrina que defende que a divisibilidade é uma questão de ordem substantiva e não processual.
Ora, embarcando um bocadinho mais no conceito de divisibilidade à luz do Direito Administrativo, é nos permitido, através da doutrina fazer uma distinção entre os atos materialmente unitários e atos complexo, entre os efeitos essenciais e acessórios e entre os efeitos favoráveis e onerosos.
A divisibilidade pode ser admissível quando o efeito impugnado não constituir uma condição sine qua non para a produção dos restantes efeitos. Uma vez que o roaming é uma imposição regulatória posterior ao direito de utilização de frequências, podemos entender como sendo uma obrigação acessória, especialmente se não existia à data uma base legal que o justificasse. A sua ilegalidade eventual não contamina de imediato a validade global do título.
Nesta situação, a possibilidade de impugnação parcial visa garantir uma resposta jurisdicional proporcionada e adequada, sem forçar o administrado a impugnar integralmente um ato que contenha efeitos legítimos e vantajosos.
Abordando agora uma perspectiva de um princípio deveras importante, temos no art.3º/1 do CPA o princípio da legalidade onde nos seus termos a Administração Pública tem de atuar em obediência à lei e o direito dentro dos limites dos poderes que lhes forem conferidos e em conformidade com os respectivos fins. Este artigo deve ser interpretado à luz de um conceito amplo de legalidade, a juridicidade, que inclui normas constitucionais, princípios gerais, direito europeu, soft law e atos infralegais. Este princípio da juridicidade traduz-se numa exigência de conformidade substancial e não meramente formal com o ordenamento jurídico.
No nosso caso em concreto, a imposição de acordos de roaming não tinha qualquer fundamento expresso na legislação nacional ou comunitária à data da emissão dos atos. Só após o Código Europeu das Comunicações Eletrónicas, que foi posterior ao ato, passou a existir previsão explícita dessa possibilidade. A retroatividade das normas e a imposição de obrigações sem base legal, violam a exigência de legalidade administrativa.
Confirmando-se que a ANACOM impôs obrigações sem existir fundamento legal, essa situação pode constituir um vício de violação de lei, determinando a invalidade do ato administrativo. Nessa situação, a possibilidade de suspensão parcial, ainda que apenas cautelar, é justificável plenamente como sendo instrumento de contenção dos efeitos ilegítimos do ato, de acordo com os princípios da proporcionalidade, artigo.7ºCPA e da boa administração, art.5º CPA.
Este princípio da boa administração que está consagrado como mencionado acima no art.5º do CPA e no art.41º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, embora não tenha sido expressamente debatido no acórdão, impõe à Administração o dever de atuar com imparcialidade, equidade, razoabilidade e eficiência. Ora, a imposição de obrigações regulatórias, sem base legal, como tentativa de impedir o escrutínio jurisdicional através de argumentos de natureza formal, contraria os deveres derivados da boa administração e do DUE Process. Os princípios constitucionais e europeus exigem que a Administração seja controlável e fundamentada, principalmente, quando atua em domínios com um forte impacto económico e concorrencial.
Podemos então concluir que a decisão do Supremo Tribunal Administrativo representa um avanço na afirmação de uma tutela jurisdicional efetiva e substantiva dos administrados, uma vez que ao afastar a ideia de que a inadmissibilidade de um pedido se pode fundar na sua eventual improcedência, o STA reafirmou o papel do juiz administrativo enquanto entidade que garante a juridicidade e o equilíbrio entre os poderes.
É um caso que não só revela a importância da distinção entre a natureza substantiva e processual dos vícios, como também a necessidade de repensar dogmaticamente a noção de indivisibilidade dos atos administrativos em contextos regulatórios. A jurisprudência que analisei convida a uma reflexão mais ampla sobre os limites do poder administrativo no Estado de Direito, sobre a relação entre a Administração e o Direito e ainda sobre o papel do contencioso administrativo enquanto instrumento de controlo e equilíbrio de poderes.
Margarida Nunes de Oliveira, subturma 12, 69655