Comentário ao Acórdão do STA nº 03/99.6BTLSB - Margarida Oliveira

16-05-2025

A presente análise incide sobre o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, STA, proferido a 16 de Dezembro de 2021 e no âmbito do processo nº 03/99.6BTLSB. Este é um caso paradigmático na evolução do Direito Administrativo contemporâneo, principalmente no que aos princípios estruturantes do ordenamento jurídico-administrativo, tais como a juridicidade, a boa administração e a proteção dos direitos dos particulares.

Quero começar por apresentar algum contexto factual e processual do caso. O mesmo teve origem numa ação declarativa de indemnização interposta por um consórcio, uma forma de associação de várias empresas, mais especificamente no caso, empreiteiras, contra o Ministério da Agricultura, Desenvolvimento Rural e das Pescas, ao alegarem a existência de custos adicionais suportados com a instalação de "juntas de desmontagem" e "juntas tipo Quick", exigidas pela entidade pública no decurso da execução de um contrato de empreitada de obras públicas. As empresas autoras da ação de indemnização alegaram que esses componentes não estavam previstos no preço contratual que havia sido acordado e argumentaram portanto a favor de uma existência de um enriquecimento injustificado por parte da Administração.

A primeira instância julgou a ação procedente e acabou por condenar a entidade pública ao pagamento da quantia reclamada. O Ministério da Agricultura, como seria de esperar, recorreu da decisão, impugnando a matéria de facto com base em deficiências na gravação da audição de julgamento, o que teria inviabilizado a reapreciação da prova. Esta questão processual, revelou tornar-se fulcral na decisão do STA.

Podemos então passar para um enquadramento jurídico do caso. Ora, nos termos do art.3º do CPA, está disposto o princípio da legalidade que vincula a Administração Pública à legalidade, que é entendida em sentido amplo como juridicidade, abrangendo não apenas a lei formal mas também os princípios gerais de direito, a Constituição da República Portuguesa, o Direito da União Europeia e os actos administrativos vinculativos.

É defendido na doutrina, mais especificamente do Professor Vasco Pereira da Silva, uma concepção moderna e abrangente do princípio da juridicidade. Nesta concepção, a Administração está diretamente vinculada pela Constituição e pelos Direitos Fundamentais nela consagrados, mesmo que estes não estejam reiterados na lei ordinária. Esta visão rompe com a concepção liberal clássica que considerava a Constituição como uma mera orientação política, sem força vinculativa sobre a Administração.

A atuação da Administração, ao impor modificações técnicas, unilateralmente, sem previsão contratual e sem assegurar uma compensação, pode levar a uma violação dos princípios da boa-fé - art.10º do CPA, da igualdade - art.6º CPA e da prossecução do interesse público em equilíbrio com os direitos dos particulares - art.4º CPA

No que toca à responsabilidade da Administração e ao Enriquecimento sem causa é necessário analisarmos cada uma das situações.

Ora, o enriquecimento sem causa, está previsto no Código Civil, no seu art.473º, no entanto é aplicável também, embora subsidiariamente no âmbito do Direito Administrativo e concretiza-se sempre que um sujeito tenha obtido um benefício patrimonial à custa de outrem, sem que exista fundamento jurídico para tal.

O STA identificou no caso concreto que existiam indícios suficientes de que o consórcio empreiteiro tinha suportado custos adicionais que beneficiaram a Administração, sem a existência de uma contraprestação. Esta situação, ao ser confirmada, violaria o princípio da justiça, do art.8º do CPA, na medida em que não é aceitável que o Estado beneficie de melhorias em obras públicas sem compensar devidamente quem as executa.

O recurso, que foi interposto pelo Ministério da Agricultura visava, em certa parte, contestar a via processual utilizada, a ação de indemnização, defendendo que o pedido deveria ser formulado por via de uma ação de reconhecimento de direitos ou interesses legalmente, art.69º da LPTA. A nivel de doutrina, o Professor Vasco Pereira da Silva defende que mais importante do que o meio é o fim e o conteúdo material do litígio, ou seja, a juridicidade não pode ser sacrificada no altar do formalismo processual.

A decisão do STA teve muita influência da análise da nulidade processual provocada pela inexistência da gravação da audiência de julgamento de 15 de fevereiro de 2019. Esta gravação era essencial para permitir a reapreciação da prova em sede de recurso.

Nos termos do art.195º do CPC, a omissão de um acto ou formalidade legalmente exigida configura nulidade, desde que possa influenciar a decisão da causa, algo que acontece no caso concreto, uma vez que a impossibilidade de acesso à prova testemunhal inviabilizou a impugnação da matéria de facto, o que acabou por violar o direito ao contraditório e à tutela jurisdicional efectiva consagrado no art.20º da CRP.

Segundo o modelo de um Direito Administrativo centrado na relação jurídica procedimental, na vinculação da Administração aos princípios jurídicos e na rejeição de uma lógica meramente autoritária ou formalista como é proposto pelo Professor Vasco Pereira da Silva, são especialmente relevantes, a valorização dos princípios jurídicos como fontes autónomas e vinculativas do Direito Administrativo, como podemos observar pelos art.4º a 12º do CPA; a recusa da ideia de "reserva da Administração" como espaço imune ao controlo jurisdicional e por último a defesa de uma Administração Pública aberta, cooperante, imparcial e racional que atue sempre no respeito pelo ordenamento jurídico em sentido lato.

É referido pelo Professor que a Administração já não é uma entidade agressiva e autoritária e é atualmente uma entidade prestadora e infraestrutural, vinculada pelos princípios constitucionais, europeus e administrativos. A atuação da Administração no caso em específico carecia de uma base contratual sólida e a sua insistência em impor soluções técnicas sem pagamento poderia ser entendida como uma falha de boa administração.

A ausência de uma resposta clara por parte do tribunal de 1ª instância à questão factual essencial, a de se as juntas estavam ou não incluídas no item contratual, acabou por justificar a decisão do STA de ordenar uma nova apreciação da matéria de facto, reforçando a importância da fundamentação adequada e da motivação clara das decisões, de acordo com o art.152º e 153º do CPA.

Em suma, o Acórdão do STA, de 16 de dezembro de 2021, representou um momento bastante relevante na jurisprudência administrativa portuguesa, ao afirmar a importância de um controlo jurisdicional efetivo sobre a atuação da Administração, mesmo no contexto das relações contratuais. A decisão reafirma que os tribunais administrativos têm de garantir o respeito pelos princípios do Estado de Direito Democrático e que a Administração Pública não está acima da Constituição, do direito ordinário nem dos princípios fundamentais do CPA, o que em conjunto com alguma doutrina evidencia a necessidade de uma Administração mais responsável, participada e jurídica e de uma justiça administrativa que não se limite apenas a controlar a legalidade formal, mas que também procure assegurar a realização dos valores constitucionais e administrativos em cada caso concreto.

Trabalho realizado por: 

Margarida Nunes de Oliveira, subturma 12, nº69655


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