Comentário ao Acórdão do STA nº 01322/22.5BELRS, de 7 de março - Maria Costa Ramos
O presente acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) aborda a questão da constitucionalidade da "Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético" (CESE), especificamente em relação à norma contida no artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico aprovado pela Lei n.º 83-C/2013, com referência à autoliquidação do ano de 2021. O acórdão representa uma decisão relevante no contencioso tributário, ao tratar de princípios fundamentais, como o princípio da igualdade e da equivalência, no contexto de contribuições financeiras, e a relação entre estas e os sujeitos passivos.
A questão fulcral consiste em saber se a aplicação da CESE aos operadores do setor de gás natural, nomeadamente à entidade impugnante, configura uma violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa - CRP) e do princípio da equivalência. Este último exige que a contribuição financeira esteja fundamentada numa relação de causalidade ou de benefício direto entre a prestação exigida e os objetivos que ela financia.
O STA analisou a conformidade constitucional da norma com base em princípios estruturantes do Direito Tributário e Administrativo, como o princípio da igualdade, a bilateralidade das contribuições financeiras e a especificação orçamental. Relevantes para esta análise são também os princípios de transparência e accountability na gestão da receita pública.
O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP, foi o principal fundamento para a discussão sobre a inconstitucionalidade da norma em causa. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem reiterado que as contribuições financeiras devem respeitar a equivalência, isto é, a existência de um nexo causal entre a atividade pública financiada e os sujeitos passivos. No caso em análise, o STA destacou que a aplicação da CESE ao setor de gás natural perdeu a legitimidade com as alterações legislativas introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018. Essas alterações destinaram a maior parte da receita à redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN), dissociando-se dos operadores do setor do gás natural.
A doutrina enfatiza que a bilateralidade nas contribuições financeiras é essencial para garantir sua legitimidade constitucional. Freitas do Amaral (Curso de Direito Administrativo) sublinha que estas contribuições devem estar vinculadas a um benefício específico ou a uma causalidade direta entre os sujeitos passivos e a atividade financiada. Além disso, Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição da República Portuguesa Anotada) destacam que o princípio da igualdade deve ser interpretado em conexão com a justiça distributiva, exigindo que contribuições como a CESE tenham uma justificação objetiva e proporcional.
No caso presente, o STA considerou que o princípio da bilateralidade não foi respeitado, pois as empresas do setor de gás natural não são presumíveis causadoras nem beneficiárias diretas das prestações financiadas pela CESE. Tal entendimento está alinhado com o Acórdão n.º 101/2023 do Tribunal Constitucional, que declarou a inconstitucionalidade da norma para situações semelhantes. Esta posição reflete a necessidade de distinguir entre benefícios diretos e reflexos, sendo apenas os primeiros aptos a legitimar a imposição de contribuições financeiras.
Outro ponto de destaque foi a análise da especificação orçamental, prevista no artigo 105.º da CRP e reforçada pela Lei de Enquadramento Orçamental (LEO). A receita da CESE não estava devidamente discriminada nos mapas orçamentais, comprometendo a transparência e a fiscalização parlamentar. Esta omissão fere o princípio de legalidade orçamental e constitui um vício substancial que compromete a validade da norma.
A jurisprudência mais recente também apontou para a incompatibilidade entre a criação de novas obrigações tributárias e a ausência de previsão clara no orçamento, o que reforça o entendimento do STA de que a norma em causa apresenta um vício de inconstitucionalidade formal.
Assim, o acórdão do STA reflete uma análise criteriosa e bem fundamentada sobre a aplicação da CESE ao setor de gás natural. A decisão reafirma a centralidade dos princípios constitucionais, como a igualdade, a especificação orçamental e a equivalência, no regime das contribuições financeiras. Ademais, sublinha a importância de assegurar que as políticas fiscais sejam coerentes com os objetivos para os quais são instituídas, evitando cargas desproporcionais sobre setores econômicos que não sejam presumíveis causadores nem beneficiários das prestações financiadas.
Por fim, a decisão contribui para a evolução da jurisprudência sobre a fiscalidade extraordinária, consolidando o entendimento de que a constitucionalidade de tributos depende do respeito pelos princípios fundamentais do Direito Tributário e Constitucional.
Referências
1. FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Volume I, 4.ª edição, Almedina, 2016.
2. MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume III, Universidade Católica Editora, 2020.
3. VEIGA e MOURA, Paulo; ARRIMAR, Cátia, Comentários à LGTFP, Coimbra Editora, 2014.
4. Tribunal Constitucional, Acórdão n.º 101/2023, de 16/03/2023.
5. Tribunal Constitucional, Acórdão n.º 296