Comentário ao Acórdão do STA nº 00337/18.2BECBR, de 09 de junho

13-12-2024

No presente acórdão, o Supremo Tribunal Administrativo (doravante STA) decidiu sobre um recurso interposto pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) contra uma decisão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), que havia anulado uma medida disciplinar aplicada a duas guardas prisionais por se recusarem a aceitar e inspecionar sacos trazidos a reclusos durante um período de greve legítima.

A questão fulcral consiste em saber se a recusa das guardas prisionais em cumprir uma ordem superior, relativa ao recebimento de sacos trazidos por visitantes em período de greve, configura violação do dever de obediência hierárquica ou se está legitimada pela nulidade da ordem, pelo direito de resistência e pela tutela de direitos fundamentais, como o direito à greve. A análise do STA fundamenta-se em princípios estruturantes do Direito Administrativo, como o da legalidade, da proporcionalidade, da hierarquia administrativa, entre outros direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), e a interpretação dos limites aos serviços mínimos em períodos de greve.

Primeiramente, o dever de obediência hierárquica, previsto no artigo 271.º da CRP e regulado no artigo 73.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), exige que os funcionários públicos acatem ordens dos superiores hierárquicos, desde que estas sejam dadas no âmbito das suas funções e respeitem os limites legais. Todavia, esse dever não é absoluto: a Constituição exclui a obediência a ordens cujo cumprimento implique a prática de crimes (artigo 271.º, n.º 3) e a doutrina maioritária sustenta que ordens manifestamente ilegais ou nulas também não vinculam o subordinado.

No caso em análise, o STA entendeu que a ordem em questão – o recebimento dos sacos durante a greve – não estava abrangida pelos serviços mínimos fixados, nem encontrava suporte legal expresso. Assim, considerou que a ordem, por implicar uma restrição excessiva ao direito de greve, estava ferida de nulidade e, como tal, não obrigava as guardas prisionais ao seu cumprimento.

Do mesmo modo, o direito de resistência, previsto no artigo 21.º da CRP, consagra a possibilidade de qualquer pessoa resistir a ordens que atentem contra os seus direitos, liberdades e garantias. No contexto do funcionalismo público, este direito assume especial relevância quando as ordens hierárquicas violam direitos fundamentais, como o direito à greve (artigo 57.º da CRP). A jurisprudência e a doutrina, nomeadamente Paulo Otero (Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa), reconhecem que, em situações de colisão entre o dever de obediência e direitos fundamentais, o peso relativo de cada um deve ser ponderado.

No presente caso, as guardas invocaram o direito de greve para justificar a recusa em cumprir a ordem, que consideraram lesiva desse direito. O STA validou essa posição, sublinhando que a greve é um direito fundamental que só pode ser restringido nos limites estritamente necessários para salvaguardar outros direitos ou interesses de igual dignidade constitucional.

Outro ponto de destaque é a análise do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 7.º do CPA. O tribunal concluiu que a imposição do cumprimento de ordens que não estavam previstas nos serviços mínimos acordados constituía uma restrição desproporcional ao direito à greve, uma vez que o recebimento de sacos de visitantes pelos reclusos não configurava uma necessidade social impreterível. Segundo o STA, as necessidades essenciais dos reclusos, como alimentação e higiene, já estavam devidamente acauteladas nos serviços mínimos acordados.

Finalmente, a doutrina divide-se quanto à questão de saber se a nulidade de uma ordem hierárquica extingue automaticamente o dever de obediência. Enquanto autores como Paulo Veiga e Moura (Comentários à LGTFP) argumentam que o cumprimento de ordens nulas não vincula o subordinado, outros, como Freitas do Amaral (Curso de Direito Administrativo), admitem a obrigatoriedade de cumprimento em casos em que a desobediência possa comprometer interesses públicos superiores. No entanto, o STA adotou uma posição que reforça o primado da legalidade e da proteção de direitos fundamentais, reconhecendo que ordens nulas não produzem efeitos jurídicos, incluindo o efeito de vincular o subordinado.

Assim, o acórdão do STA reflete uma interpretação cuidadosa e equilibrada dos princípios fundamentais do Direito Administrativo e Constitucional. Deste modo, reafirma a importância do princípio da legalidade e a necessidade de respeitar os direitos fundamentais, especialmente quando estes colidem com o dever de obediência hierárquica. Nesse contexto, o tribunal sublinhou que, em situações de conflito, como no caso do direito à greve, deve prevalecer a proteção das liberdades constitucionalmente garantidas.

Além disso, o reconhecimento do direito de resistência como forma de salvaguardar os direitos, liberdades e garantias demonstra o compromisso do STA com a valorização do Estado de Direito e com uma Administração Pública transparente e previsível. Por fim, o acórdão reforça a ideia de que a hierarquia administrativa, embora essencial ao bom funcionamento da Administração, não pode ser usada como um instrumento para legitimar atos que sejam manifestamente ilegais ou que imponham restrições desproporcionais a direitos fundamentais.

Referências

1. FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Volume I, 4.ª edição, Almedina, 2016.

2. OTERO, Paulo, Conceito e Fundamento da Hierarquia Administrativa, Almedina, 2004.

3. VEIGA e MOURA, Paulo; ARRIMAR, Cátia, Comentários à LGTFP, Coimbra Editora, 2014.

4. MIRANDA, Jorge; MEDEIROS, Rui, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume III, Universidade Católica Editora, 2020.

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