Comentário ao Acórdão do STA de 19-06-2019; Processo: 0494/17.5BALSB - Bárbara Peres
§1.º - Introdução;
O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 19 de junho de 2019 resulta da ação interposta por um Procurador Adjunto contra o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), visando a anulação da deliberação que confirmou a sua classificação de serviço como "Suficiente". A questão central do processo consiste em aferir se houve erro na ponderação dos parâmetros legais de avaliação e se a fundamentação da decisão administrativa foi suficiente, à luz dos princípios que regem a justiça administrativa.
§2.º - Enunciação da matéria de facto;
O autor, Procurador Adjunto com cerca de 20 anos de serviço, foi objeto de inspeção ordinária relativa ao período de 2012 a 2016. O Relatório de Inspeção propôs a classificação de "Bom", salientando diversos aspetos positivos do seu desempenho funcional, embora assinalasse atrasos sistemáticos na tramitação processual. A Secção para Apreciação do Mérito Profissional do CSMP, contudo, deliberou atribuir a classificação de "Suficiente", ponderando que os atrasos comprometiam o cumprimento cabal das obrigações do cargo. Essa decisão foi confirmada pelo Plenário do CSMP, levando o autor a impugnar judicialmente o ato.
§3.º - O direito à audiência prévia;
Foi garantido ao autor o exercício do contraditório em diversos momentos do procedimento, incluindo a possibilidade de se pronunciar sobre o relatório da inspeção e de apresentar reclamação contra a deliberação classificativa, com junção de documentos. Assim, a formalidade da audiência prévia foi respeitada, não suscitando controvérsia no processo.
O regime da audiência prévia das partes, constante dos artigos 80.º, 100.º e 121.º e ss. do CPA corresponde à terceira fase do procedimento administrativo, sendo "assegurado aos interessados num procedimento o direito de participarem na formação de decisões que lhes digam respeito."[1]É nesta fase que se articulam variadíssimos princípios, como nomeadamente, o princípio da colaboração da Administração com os particulares (artigo 11.º, n.º 1 do CPA), o princípio da participação (artigo 12.º do CPA) e o princípio da democracia participativa, constitucionalmente plasmado nos artigos 2.º, in fine e 267.º, n.º 5 da CRP[2].
Segundo o Professor Diogo Freitas do Amaral, a consagração deste direito manifesta-se na "passagem de uma Administração Pública isolada, unilateral e autoritária para uma Administração Pública participada, concertada e democrática", que por conseguinte representa um aperfeiçoamento do Estado de Direito em Portugal.
Por sua vez, Marcelo Rebelo de Sousa argumenta que a Administração, agindo discricionariamente, pode dispensar a audiência prévia em certos casos, conforme previsto no artigo 124.º, n.º 1 do CPA. Igualmente é de se referir que, atentando ao princípio da democracia representativa, a decisão final deverá ser acompanhada de fundamentação, sendo concebível recorrer da decisão na hipótese desta não se mostrar satisfatória para os interessados (n.º2).
§4.º - O regime da nulidade e anulabilidade;
Tendo em conta a divergência quanto à aplicação do regime da nulidade ou da anulabilidade, parece adequado examinar previamente estas formas de invalidade do ato administrativo.
Paulo Otero define a invalidade como uma conduta que não respeita todos os requisitos que lhe são impostos pela juridicidade. Esta pode então expressar-se em variados desvalores jurídicos, sendo os mais típicos a nulidade e a anulabilidade.
Conforme Diogo Freitas do Amaral, a nulidade é a forma mais gravosa de invalidade, provocando ab initio a ausência de produção de quaisquer efeitos jurídicos, tal como prevê o art 161.º do CPA. Igualmente deve-se salientar que, um ato nulo é insanável, quer quer pelo decurso do tempo (artigo 162.º, n.º 1 do CPA), quer por ratificação (artigo 164.º, n.º 1 CPA), sendo, por isso, invocável a todo o tempo por qualquer interessado. Deste modo, a sua impugnação não está sujeita a prazo (artigo 162.º, n.º 2 do CPA e artigo 58.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos). Aliás, tendo em conta o presente no n.º 2 do artigo 162.º do CPA, com efeitos erga omnes, esta pode ser declarada a qualquer momento, tanto pelos tribunais administrativos, como pelos órgãos da Administração competentes para tal.
A questão principal analisada foi a alegada falta de fundamentação e a eventual existência de erro nos pressupostos de facto e de direito. O tribunal reiterou que atos administrativos com natureza discricionária, como a avaliação de mérito, são sindicáveis apenas em caso de erro manifesto, desvio de poder ou fundamentação insuficiente, enquadrando-se assim no regime da anulabilidade (art. 163.º do CPA), e não da nulidade.
Parece que tanto a jurisprudência, como na doutrina, tem havido unanimidade quanto à ideia de que a nulidade do ato administrativo se afigura com a exceção à regra a que corresponde a anulabilidade (artigo 161.º, n.º 1. do CPA).
Em contrapartida, este desvalor jurídico surge como menos gravoso, pelo que ainda que seja inválido é juridicamente eficaz (artigo 163.º, n.º 2 do CPA). É possível estabelecer tal raciocínio, uma vez que a menor gravidade prende-se com o facto do ato anulado ser sanável, quer pelo decurso do tempo, quer por ratificação, reforma ou conversão (artigo 164.º n.º 1 do CPA).
§5.º - O problema jurídico da fundamentação da decisão;
O recorrente alegou que o ato impugnado se fundava exclusivamente em juízo valorativo sobre atrasos na tramitação processual, desconsiderando outros aspectos relevantes. O STA entendeu, contudo, que a fundamentação apresentada era suficiente e que os parâmetros legais foram devidamente ponderados. A fundamentação da deliberação expressamente reconheceu aspetos positivos, mas considerou que os atrasos estruturais e não justificados impediam a atribuição de uma notação superior, sendo legítima a valoração efetuada pelo CSMP.
§6.º - Posição adotada pelo STA;
O STA reafirmou que o CSMP atua no domínio da chamada "justiça administrativa", dispondo de margem de livre apreciação na avaliação de mérito dos magistrados. Tal margem é sindicável apenas quanto ao cumprimento dos parâmetros legais, à existência de erro manifesto ou à ausência de fundamentação. No caso concreto, considerou que a decisão estava suficientemente fundamentada, não tendo sido violadas as normas do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público nem do Regulamento das Inspeções.
§7.º - Notas finais;
Este acórdão demonstra a deferência dos tribunais quanto às avaliações realizadas por órgãos dotados de prerrogativas próprias de apreciação, como o CSMP. A fundamentação, mesmo que sucinta, deve tornar claro o processo decisório e a ponderação de todos os fatores legalmente exigidos. Neste caso, o STA entendeu que tal exigência foi cumprida, não sendo detectado qualquer erro que justificasse a anulação do ato.
§8.º - Bibliografia.
CAUPERS, J. e EIRÓ, V. (2016). Introdução ao Direito Administrativo, 12.ª ed., Âncora Editora. Lisboa.
FREITAS DO AMARAL, D. (2020). Curso de Direito Administrativo, Volume II, 4.ª ed., Almedina. Coimbra.
OTERO, P. (2019). Manual de Direito Administrativo, Volume I, Almedina. Coimbra.
PEREIRA DA SILVA, V. (1998). Em Busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina. Coimbra.
REBELO DE SOUSA, M. (1995). Lições de Direito Administrativo, Volume I, Pedro Ferreira Editor. Lisboa.
REBELO DE SOUSA, M. (2006). e SALGADO DE MATOS, A., Direito Administrativo Geral, Tomo I, 2.ª ed., Dom Quixote. Lisboa.
[1] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, 4.ª ed., Almedina, 2020, p. 299
[2] Expressamente consagrado no artigo 267.º, n.º da CRP: "o processamento da atividade administrativa (...) assegurará (...) a participação dos cidadãos na formação de decisões ou deliberações que lhes disserem respeito."