Comentário ao Acórdão do STA de 14/12/2022 (Proc. n.º 01238/21.2BELRA) - Diogo Ventura
1. Introdução
O acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) no dia 14 de dezembro de 2022 trata de uma questão fundamental no domínio do processo tributário: a admissibilidade de um recurso interposto diretamente para o STA, a partir de uma decisão proferida por um tribunal tributário de 1.ª instância. O STA, após analisar os pressupostos processuais do recurso, decidiu pela sua rejeição com fundamento na inadmissibilidade legal, reiterando a importância da correta observância das regras de competência e da tramitação dos recursos estabelecidos no ordenamento jurídico português.
Este acórdão assume especial relevância na consolidação da jurisprudência relativa à hierarquia dos tribunais administrativos e fiscais e à forma adequada de utilização dos recursos jurisdicionais, que são instrumentos essenciais para garantir a legalidade e a tutela dos direitos fundamentais em matéria tributária.
2. O Objeto do Recurso e a Fundamentação do STA
O recurso em análise foi interposto diretamente para o Supremo Tribunal Administrativo, a partir de uma decisão de um tribunal tributário de 1.ª instância. O recorrente não recorreu previamente para o Tribunal Central Administrativo (TCA), como legalmente exigido, e tampouco demonstrou a existência de uma exceção legal que justificasse esse recurso direto ao STA.
O Supremo Tribunal rejeitou o recurso, fundamentando a sua decisão essencialmente no artigo 280.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que dispõe que os recursos das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância seguem, em regra, para os Tribunais Centrais Administrativos. A exceção a esta regra depende de norma expressa que o permita, como é o caso de oposição de acórdãos ou de decisões que suscitem matéria de especial complexidade e relevância jurídica — circunstâncias que não se verificavam no presente caso. O STA salientou que, na ausência de uma dessas exceções, a estrutura hierarquizada da jurisdição administrativa e fiscal deve ser respeitada, sob pena de nulidade e rejeição dos atos processuais praticados em desconformidade com a lei.
3. Quadro Legal Relevante
No Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) o artigo 280.º do CPPT estipula que: "As decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância são recorríveis para o Tribunal Central Administrativo territorialmente competente."
Esta regra deve ser conjugada com os restantes dispositivos do CPPT, nomeadamente os que regulam o regime de admissibilidade dos recursos e os seus requisitos formais. Entre eles, salienta-se o artigo 284.º do CPPT, que estabelece o regime de subida e efeito dos recursos, bem como o artigo 285.º, que trata da admissibilidade dos recursos de revista.
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF). Nos termos do artigo 26.º do ETAF, os Tribunais Centrais Administrativos têm competência para conhecer dos recursos das decisões proferidas pelos tribunais tributários de 1.ª instância. Já o artigo 27.º reserva ao Supremo Tribunal Administrativo a apreciação dos recursos interpostos das decisões proferidas pelos Tribunais Centrais Administrativos, bem como os recursos de uniformização de jurisprudência e outros casos especiais, nomeadamente:
Conflitos de competência ou jurisdição;
Contradição de acórdãos, nos termos do artigo 152.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA);
Recursos de decisões que suscitem uma questão de relevância jurídica fundamental.
O CPTA, aplicável subsidiariamente ao CPPT nos termos do artigo 2.º do CPPT, também estabelece regras sobre a admissibilidade e tramitação dos recursos. O artigo 144.º do CPTA consagra o princípio da hierarquia nos recursos, dispondo que os recursos ordinários devem ser interpostos para o tribunal imediatamente superior. O artigo 150.º regula os recursos de revista, que, como recurso excecional, apenas são admissíveis nas situações previstas por lei.
4. Princípios Constitucionais e Processuais
Este acórdão também se ancora em princípios fundamentais do direito processual e constitucional português. Desde logo, o princípio da legalidade processual, consagrado no artigo 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP), obriga a Administração Pública e os tribunais a atuarem nos termos da lei, respeitando os procedimentos legalmente estabelecidos. A par deste, o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da CRP, não confere um direito irrestrito a recorrer em qualquer situação ou instância. A Constituição remete para a lei ordinária a definição das vias processuais admissíveis, pelo que a violação da tramitação legal de um recurso não configura uma ofensa ao direito de acesso à justiça, desde que o sistema proporcione meios razoáveis e proporcionais de tutela judicial.
5. Considerações Finais
O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14 de dezembro de 2022 é exemplar na reafirmação da correta aplicação das normas processuais no contencioso tributário. Ao rejeitar um recurso por manifesta inadmissibilidade legal, o STA demonstra uma postura de rigor na aplicação das normas de competência e hierarquia processual, promovendo a segurança jurídica e a coerência decisória dos tribunais administrativos.
Este acórdão constitui, assim, um importante alerta aos operadores jurídicos: não basta invocar genericamente a necessidade de tutela judicial — é fundamental respeitar os trâmites legais, conhecer a arquitetura da jurisdição administrativa e fiscal, e estruturar os meios impugnatórios de acordo com a lei. Só assim se garante uma justiça administrativa funcional, respeitadora dos princípios do Estado de Direito.