Comentário ao Acórdão do STA de 13-01-2021; Processo: 0351/12.1BESNT - Bárbara Martins
Introdução;
O recurso apresentado contra a decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (TAF de Sintra), foi o conflito judicial sub judice que originou o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), que (i) julgou procedente a exceção perentória de caducidade do direito de ação e (ii) absolveu a administração fiscal do pedido de impugnação de um ato relacionado com o IVA.
A problemática que se pretende analisar prende-se com a falta de audiência prévia dos interessados em processos administrativos e à consequente aplicação do regime da nulidade (artigo 161.º do Código do Procedimento Administrativo - CPA) ou da anulabilidade (artigo 163.º CPA), dependendo da consideração ou não do direito à audiência prévia como um direito fundamental, ou da adoção de uma posição intermediária, como vem sendo verificado na jurisprudência.
De facto;
No Acórdão em apreço, verifica-se que a impugnante foi submetida a uma ação inspetiva externa, que resultou em correções à matéria tributária, referentes ao IVA, dos anos de 2007, 2008 e 2009. Em consequência desta ação, foram emitidas liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, referentes aos exercícios dos anos supramencionados, com vencimento para pagamento voluntário em 31-10-2011.
A Autora intentou uma ação de impugnação contra o ato de liquidação, mas o TAF de Sintra considerou a ação intempestiva, por desrespeito ao prazo estabelecido no artigo 58.º, n.º 1, al. b) do CPTA. Em desacordo, a Autora recorreu da decisão, alegando a tempestividade da ação e violação do direito à participação dos interessados em decisões que lhes dizem respeito, nomeadamente pela falta de audiência prévia, contrariando o direito previsto no artigo 267.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Além disso, argumenta que a ausência da audiência prévia, enquanto formalidade essencial, implica a nulidade e não apenas a anulabilidade do ato administrativo.
O direito à audiência prévia;
O regime da audiência prévia das partes, constante dos artigos 80.º, 100.º e 121.º e ss. do CPA corresponde à terceira fase do procedimento administrativo, sendo "assegurado aos interessados num procedimento o direito de participarem na formação de decisões que lhes digam respeito."[1]
É nesta fase que se articulam variadíssimos princípios, como nomeadamente, o princípio da colaboração da Administração com os particulares (artigo 11.º, n.º 1 do CPA), o princípio da participação (artigo 12.º do CPA) e o princípio da democracia participativa, constitucionalmente plasmado nos artigos 2.º, in fine e 267.º, n.º 5 da CRP[2].
Segundo o Professor Diogo Freitas do Amaral, a consagração deste direito manifesta-se na "passagem de uma Administração Pública isolada, unilateral e autoritária para uma Administração Pública participada, concertada e democrática", que por conseguinte representa um aperfeiçoamento do Estado de Direito em Portugal.
Por sua vez, Marcelo Rebelo de Sousa argumenta que a Administração, agindo discricionariamente, pode dispensar a audiência prévia em certos casos, conforme previsto no artigo 124.º, n.º 1 do CPA. Igualmente é de se referir que, atentando ao princípio da democracia representativa, a decisão final deverá ser acompanhada de fundamentação, sendo concebível recorrer da decisão na hipótese desta não se mostrar satisfatória para os interessados (n.º2).
Regime da nulidade e anulabilidade;
Tendo em conta a divergência quanto à aplicação do regime da nulidade ou da anulabilidade, parece adequado examinar previamente estas formas de invalidade do ato administrativo.
Paulo Otero define a invalidade como uma conduta que não respeita todos os requisitos que lhe são impostos pela juridicidade. Esta pode então expressar-se em variados desvalores jurídicos, sendo os mais típicos a nulidade e a anulabilidade.
Conforme Diogo Freitas do Amaral, a nulidade é a forma mais gravosa de invalidade, provocando ab initio a ausência de produção de quaisquer efeitos jurídicos, tal como prevê o art 161.º do CPA. Igualmente deve-se salientar que, um ato nulo é insanável, quer quer pelo decurso do tempo (artigo 162.º, n.º 1 do CPA), quer por ratificação (artigo 164.º, n.º 1 CPA), sendo, por isso, invocável a todo o tempo por qualquer interessado. Deste modo, a sua impugnação não está sujeita a prazo (artigo 162.º, n.º 2 do CPA e artigo 58.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos). Aliás, tendo em conta o presente no n.º 2 do artigo 162.º do CPA, com efeitos erga omnes, esta pode ser declarada a qualquer momento, tanto pelos tribunais administrativos, como pelos órgãos da Administração competentes para tal.
Parece que tanto a jurisprudência, como na doutrina, tem havido unanimidade quanto à ideia de que a nulidade do ato administrativo se afigura com a exceção à regra a que corresponde a anulabilidade (artigo 161.º, n.º 1. do CPA). [3]
Em contrapartida, este desvalor jurídico surge como menos gravoso, pelo que ainda que seja inválido é juridicamente eficaz (artigo 163.º, n.º 2 do CPA). É possível estabelecer tal raciocínio, uma vez que a menor gravidade prende-se com o facto do ato anulado ser sanável, quer pelo decurso do tempo, quer por ratificação, reforma ou conversão (artigo 164.º n.º 1 do CPA).
A questão jurídica da falta de audiência prévia;
A problemática da ausência de audiência prévia reveste-se de significativa complexidade e controvérsia no ordenamento jurídico, originando três principais correntes doutrinárias sobre a natureza jurídica dessa invalidade.
A primeira tese, defendida por Sérvulo Correia e Vasco Pereira da Silva, considera que a audiência prévia constitui um direito fundamental atípico, análogo aos direitos, liberdades e garantias. Sob tal ótica, a prática de um ato administrativo sem prévia audiência dos interessados configura uma violação do conteúdo essencial de um direito fundamental, acarretando, assim, nulidade do ato (nos termos do artigo 162.º do CPA e do artigo 17.º da CRP). Ademais, Vasco Pereira da Silva sublinha que, independentemente das normas mencionadas, o princípio da dignidade da pessoa humana exige que todas as decisões administrativas que afetem direitos fundamentais sejam tomadas em um contexto participativo. [4]
Diogo Freitas do Amaral, João Pedro Caupers e Pedro Machete, professam a segunda corrente, sustentando que a ausência de audiência prévia gera a mera anulabilidade do ato administrativo. Para Freitas do Amaral, tal entendimento baseia-se em dois argumentos:
A sanção de nulidade para a falta de audiência em casos menos graves seria desproporcional em relação à anulabilidade aplicada em casos mais graves, como a ausência de audiência do arguido em processo disciplinar;
Os direitos fundamentais abrangem meramente direitos, liberdades e garantias, bem como direitos de natureza análoga, excluindo, portanto, o direito de audiência, que seria classificado como um direito subjetivo público de caráter administrativo. Nesse sentido, o direito de audiência não estaria diretamente ligado à proteção da dignidade da pessoa humana, valor jurídico essencial dos direitos fundamentais. [5]
Por fim, a última posição surge como intermediária, tendo vindo a ser adotada por alguma jurisprudência, nomeadamente pela decisão do Supremo Tribunal Administrativo sub judice.
Posição adotada pelo STA;
Por conseguinte, o problema prende-se com averiguar se de facto o ato administrativo em causa importa a nulidade ou anulabilidade.
No Acórdão em apreço, o STA decidiu adotar uma posição intermediária[6], concluindo que apesar de considerar o direito à audiência prévia como um direito fundamental instrumental, consagrado constitucionalmente no artigo 267.º, n.º 5 da CRP, só dá azo à nulidade, quando nos termos do artigo 161.º, n.º 2, al. b) do CPA, esteja em causa o conteúdo essencial de um direito fundamental.
De acordo com o STA, a ofensa ao conteúdo essencial de um direito fundamental ocorre apenas quando o direito afetado perde a sua expressão prática apreciável, o que não é o caso, tendo em conta que em causa se encontra uma iliquidação ilegal, pelo que atinge apenas limitadamente o direito de propriedade dos seus destinatários.[7]
No caso específico analisado, a omissão da audiência prévia não comprometeu o conteúdo essencial do direito fundamental à propriedade (artigo 62.º da CRP), uma vez que o impacto do ato tributário em causa foi limitado. Subsequentemente, o ato foi considerado simplesmente anulável, visto que a ação foi intempestiva, respeitando-se os prazos de caducidade para este contexto (artigo 163.º, n.º 3, do CPA e artigo 58.º, n.º 1, al. b), do CPTA).
Conclusão;
Conclui-se então, que segundo o STA, o direito à audiência dos interessados tem natureza instrumental, configurando-se apenas como direito fundamental, caso seja essa a natureza do direito fundamental material em causa no procedimento.
Revela-se então que a problemática mais trabalhosa relaciona-se com a densificação do conceito/entendimento de direito fundamental, expresso no artigo 161.º, n.º 2, al. d) do CPA, cabendo à doutrina e à jurisprudência estabelecer o alcance dessa norma.
Bibliografia.
CAUPERS, J. e EIRÓ, V. (2016). Introdução ao Direito Administrativo, 12ª ed., Âncora Editora. Lisboa.
CAETANO, M. (1996). Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, Almedina. Coimbra.
FREITAS DO AMARAL, D. (2020). Curso de Direito Administrativo, Volume II, 4.a ed., Almedina. Coimbra.
GONÇALVES, F., ALVES, M. J., VIEIRA, V. M., GONÇALVES, R. M., CORREIA, B., GONÇALVES, M. (2017).Novo Código do Procedimento Administrativo - Anotado e Comentado, 5 ª ed., Almedina. Coimbra.
OTERO, P. (2019). Manual de Direito Administrativo, Volume I, Almedina. Coimbra.
PEREIRA DA SILVA, V. (1998). Em Busca do Ato Administrativo Perdido, Almedina. Coimbra.
REBELO DE SOUSA, M. (1995), Lições de Direito Administrativo, Volume I, Pedro Ferreira Editor. Lisboa.
[1] DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, 4.ª ed., Almedina, 2020, p. 299
[2] Expressamente consagrado no artigo 267.º, n.º da CRP: "o processamento da atividade administrativa (...) assegurará (...) a participação dos cidadãos na formação de decisões ou deliberações que lhes disserem respeito."
[3]Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 21-01-2021, Processo n.º 2278/19.7BELSB: "Em regra, os vícios dos atos administrativos implicam a sua mera anulabilidade, só ocorrendo nulidade quando falte qualquer elemento essencial do ato, quando a lei expressamente o determine, ou quando se verifiquem as circunstâncias referidas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 161.º do CPA, designadamente quando ocorra ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental."
[4] VASCO PEREIRA DA SILVA, Em buscar do Ato Administrativo perdido, Almedina, 1998, pp. 431.
[5] DIOGO FREITAS DO AMARAL, op.cit., pp. 367 ss
[6] Também neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21-01-2004, Processo n.º 0429/02: "Assim, por via de regra, a falta de audiência dos interessados antes da decisão final do procedimento constitui vício gerador de mera anulabilidade dessa decisão (artigo 135.º do CPA). Mas será gerador de nulidade da decisão com a qual está instrumentalmente conexionada quando esta ponha em causa o conteúdo essencial de um direito fundamental (artigo 133, nº 2, al. d) do CPA)."
[7] Acórdão do Suprema Tribunal Administrativo, de 13-01-2021, Processo n.º0351/12.1BESNT