Comentário ao Acórdão do STA de 11/06/2019 (Proc. n.º 0367/15.6BECBR) - Diogo Ventura
1. Introdução
O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA), proferido em 11 de junho de 2019 no âmbito do processo n.º 0367/15.6BECBR, constitui um importante contributo para a consolidação da jurisprudência nacional no que respeita à proteção dos direitos adquiridos e aos limites da revogação de atos administrativos favoráveis. O caso em apreço centra-se na revogação de um subsídio vitalício concedido a um particular, posteriormente convertido em dívida, o que originou uma oposição à execução fiscal por parte do executado.
A análise desenvolvida neste acórdão evidencia a tensão entre a atuação da Administração Pública, no exercício do seu poder de autotutela, e os direitos fundamentais dos particulares à confiança legítima e à segurança jurídica, num contexto em que também se colocam questões de prescrição e legalidade tributária.
2. Enquadramento Jurídico
O litígio assenta na revogação de um subsídio vitalício anteriormente concedido ao recorrente, com base na alegada ilegitimidade da sua manutenção. A Administração considerou tal revogação como título para a instauração de um processo de execução fiscal, ao qual o particular se opôs com fundamento na ilegalidade da dívida exequenda e na violação de princípios fundamentais.
Nesta decisão, o STA foi chamado a pronunciar-se sobre a admissibilidade da revogação de um ato administrativo favorável, bem como sobre a possibilidade de a Administração recorrer ao processo de execução fiscal para cobrar montantes cuja exigibilidade carece de sustentação legal clara.
Do ponto de vista jurídico, esta matéria é regulada por vários diplomas fundamentais do ordenamento jurídico português. Desde logo, o Código do Procedimento Administrativo (CPA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro, estabelece, no seu artigo 168.º, que os atos administrativos constitutivos de direitos não podem ser revogados, salvo se forem ilegais e a revogação ocorrer dentro do prazo legal para a sua impugnação (n.º 1), ou se o administrado tiver prestado declarações falsas ou omitido factos relevantes (n.º 2).
Acresce que, nos termos do artigo 6.º do CPA, a Administração encontra-se vinculada ao princípio da legalidade, apenas podendo agir nos termos expressamente previstos na lei e para os fins por ela determinados. A par disso, o artigo 10.º do CPA consagra o princípio da proteção da confiança, impondo que os administrados não sejam surpreendidos por decisões inesperadas ou retroativas que afetem negativamente posições jurídicas consolidadas.
Em sede fiscal, o artigo 48.º da Lei Geral Tributária (LGT) estabelece que a oposição à execução constitui o meio próprio de defesa contra a exigência coerciva de tributos, sendo admissível a invocação de fundamentos como a inexistência da dívida, a falta de notificação do ato tributário ou a prescrição. Esta última questão é regulada no artigo 175.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que sistematiza os fundamentos legais de oposição. A revisão dos atos tributários, por sua vez, é disciplinada pelo artigo 78.º da LGT, que determina os casos e prazos em que os mesmos podem ser revistos, condicionando essa revisão ao respeito pelos direitos dos contribuintes.
3. A Fundamentação do Supremo Tribunal Administrativo
O Supremo, fazendo uma aplicação articulada dos princípios e normas referidas, considerou que a revogação do subsídio vitalício não se enquadrava nos casos legalmente admissíveis para a revogação de atos administrativos favoráveis. Sublinhou que a Administração não pode, à margem do disposto no artigo 168.º do CPA, eliminar efeitos jurídicos já consolidados na esfera jurídica do particular, em particular quando estes foram atribuídos através de um procedimento regular, sem vícios de legalidade aparentes.
Do ponto de vista do processo executivo, o acórdão sustenta que não é admissível a instauração de uma execução fiscal com base num título cuja legalidade está seriamente comprometida ou cuja exigibilidade ainda se encontra por aferir. O uso da execução fiscal nesses termos contraria o artigo 48.º da LGT, ao privar o contribuinte de uma via adequada de defesa e colocar em causa os seus direitos processuais fundamentais. Tal entendimento alinha-se com a necessidade de assegurar o princípio da proporcionalidade e o respeito pelo direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
O Supremo relembra ainda que a Administração não é titular de um poder absoluto de autotutela, estando limitada por prazos (como os da prescrição) e por deveres de respeito pelos direitos adquiridos. Ignorar tais limites comprometeria a estabilidade do ordenamento jurídico e a confiança dos cidadãos nas instituições.
4. Jurisprudência
Este entendimento não surge isolado. O Acórdão do STA de 10 de janeiro de 2018 (Proc. 01269/15) já havia afirmado que os atos administrativos favoráveis, quando definitivos e eficazes, apenas podem ser eliminados com base em fundamentos legais expressos e mediante a observância das garantias processuais adequadas. Da mesma forma, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 21 de junho de 2017, defendeu que a Administração está impedida de revogar atos favoráveis sem que estejam preenchidos os requisitos legais de exceção.
5. Conclusão
O acórdão em análise constitui uma reafirmação clara dos pilares fundamentais do Direito Administrativo português: a vinculação da Administração à legalidade (art. 6.º CPA), a proteção da confiança legítima (art. 10.º CPA), a estabilidade dos atos administrativos favoráveis (art. 168.º CPA) e o direito à oposição e à defesa no processo executivo tributário (arts. 48.º e 78.º da LGT, art. 175.º do CPPT).
Mais do que uma decisão sobre um subsídio vitalício, trata-se de uma manifestação inequívoca do papel contra-majoritário dos tribunais administrativos na defesa dos cidadãos contra arbitrariedades administrativas. O Supremo Tribunal Administrativo atua, assim, como garante da integridade do sistema jurídico, assegurando que o poder público respeite os limites legais da sua atuação e proteja os direitos que ele próprio criou.