Comentário ao Acórdão do STA de 01/06/2023; (Proc. 01435/12.1BELRA) - Diana Magno da Costa

24-04-2025

1. Introdução:

O acórdão em causa incide sobre a admissibilidade de recursos de revista em matéria de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, na sequência de um desmoronamento de terras numa arriba em Peniche, que causou a morte de duas pessoas. Após decisão em 1.ª instância e em sede de TCA-Sul, o Supremo admite os recursos com base na relevância jurídica e complexidade da questão, e na insuficiência da fundamentação da repartição da culpa entre vítimas e entidades públicas demandadas (Estado Português e APA).

Esta análise examina criticamente a fundamentação do STA à luz de temas centrais da responsabilidade administrativa e das garantias dos particulares.

2. A Responsabilidade Civil da Administração Pública:

O acórdão em análise insere-se claramente no domínio da responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública por omissão. A omissão da APA em garantir a sinalização adequada da arriba revela um comportamento negligente suscetível de integrar o disposto no art. 483.º n.º 1 do Código Civil, aplicado por força do Regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas (Lei n.º 67/2007).

O Supremo considera necessário reavaliar a proporção da culpa atribuída às vítimas por entender que a fundamentação do TCA-Sul "não beneficia de uma sustentação sólida e detalhada". Esta dúvida quanto à relação causal entre a omissão da Administração e o dano é precisamente onde incide a análise crítica do conceito da culpa na responsabilidade civil administrativa.

Conforme sustenta professor Vasco Pereira da Silva, a responsabilidade do Estado por omissão não se deve distinguir substancialmente da responsabilidade por ação, desde que haja violação de um dever jurídico de atuação e o dano seja evitável se esse dever tivesse sido cumprido. Assim, o acórdão mostra prudência ao exigir maior rigor na individualização da conduta omissiva da Administração, e com isso aproxima-se da doutrina moderna que recusa fragmentar a responsabilidade pública.

O facto de a APA ter competências em matéria de proteção costeira coloca a sua atuação dentro da esfera de gestão pública. Antigamente, este tipo de atividade poderia ser qualificado como de "gestão privada" — afastando a responsabilidade objetiva. Hoje, contudo, como o próprio acórdão deixa entrever ao reconhecer a "elevada complexidade" da matéria, essa distinção é cada vez mais tida como ultrapassada.

O professor regente sustenta que esta distinção tradicional é "resquício de um direito administrativo fragmentado", sendo preferível uma conceção unitária da responsabilidade administrativa — sempre que se verifique o incumprimento de um dever jurídico de proteção do particular por parte da Administração.

A omissão de sinalização da arriba, sendo diretamente enquadrável nas funções públicas da APA, reforça a natureza pública da responsabilidade e torna inadequado um raciocínio que tente justificar a redução da indemnização com base em critérios clássicos da gestão privada.

3. Garantias dos Particulares e o Acesso ao Contencioso:

Embora o acórdão incida já sobre uma instância jurisdicional superior, é importante analisar o contexto das garantias procedimentais pré-contenciosas dos particulares. A situação em apreço envolve vítimas indiretas (pais das vítimas mortais), cujo acesso ao processo e direito à indemnização dependeram da via judicial, não tendo as medidas preventivas ou de alerta da Administração sido eficazes.

O recurso ao contencioso foi, portanto, a única via efetiva de tutela — e o Supremo reconhece essa necessidade ao admitir a revista, valorizando a insegurança gerada pela fundamentação do TCA-Sul.

O professor Vasco Pereira da Silva, num comentário realizado ao artigo 20.º da CRP, alerta que a existência de garantias administrativas, como a reclamação ou o recurso hierárquico, nunca pode obstar ao acesso imediato à via jurisdicional, especialmente em situações de lesão grave ou irreversível — como sucede no caso em análise.

Ao admitir a revista com fundamento na melhor aplicação do direito (art. 150.º, n.º 1, do CPTA), o Supremo reforça a exigência de decisões judiciais suficientemente fundamentadas e juridicamente coerentes. A crítica ao acórdão do TCA-Sul, por este ter estabelecido uma divisão de responsabilidades "controversa" e sem sustentação "sólida e detalhada", protege o princípio da confiança legítima dos particulares na justiça administrativa.

Este posicionamento também responde à exigência constitucional de que a tutela jurisdicional efetiva não se pode limitar a uma formalidade — ela deve permitir uma apreciação séria, técnica e rigorosa das condutas imputadas à Administração.

4. Considerações Finais:

O acórdão de 1 de junho de 2023 do STA deve ser valorizado por várias razões, nomeadamente por:

  • Afirmar a centralidade do dever de fundamentação técnica das decisões administrativas e jurisdicionais, especialmente em matéria de repartição de culpa entre Administração e particulares;

  • Valorizar o papel da Administração Pública como garante da segurança e proteção dos cidadãos, responsabilizando-a (ainda que de forma preliminar) por omissões que possam conduzir a situações como a prevista no acórdão;

  • Demonstrar alinhamento com uma conceção moderna e unificadora da responsabilidade civil da Administração;

  • Reforçar a tutela jurisdicional efetiva, assegurando que os particulares têm não só o direito de recorrer aos tribunais, mas também o de obter decisões fundamentadas e respeitadoras dos seus direitos constitucionais. 


5. Bibliografia:

  • Pereira da Silva, Vasco, Direito Constitucional e Administrativo sem Fronteiras, Almedina, Coimbra, 2019.
  • Freitas do Amaral, Diogo, Curso de Direito Administrativo – Vol. II, Almedina, 2003.
  • Canotilho, J. J. Gomes / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007. 


Trabalho realizado por Diana Magno da Costa (TB, Subturma 12).



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