Comentário ao Acórdão do STA 13-01-2021, Processo n.º0351/12.1BESNT - Miguel Cordeiro
Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13-01-2021, Processo n.º0351/12.1BESNT
Sumário:
O conflito judicial sub judice que dá origem ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) teve por base uma interposição de recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (TAF de Sintra), que julgou procedente a exceção perentória de caducidade do direito de ação e absolveu o fisco do pedido de impugnação de um ato de IVA.
A questão discutida prende-se com a falta de audiência prévia dos interessados no procedimento administrativo e a consequente aplicação do regime da nulidade (art.161º do Código Procedimento Administrativo), da anulabilidade (art.163º do CPA).
No presente Acórdão consta que a impugnante foi objeto de uma ação inspetiva externa, através da qual foram apuradas correções à matéria tributária, em sede de IVA, dos exercícios de 2007, 2008 e 2009. No seguimento desta ação, foram emitidas as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios, referentes aos exercícios dos anos supramencionados, com prazo limite de pagamento voluntário a 31-10-2011.
A Autora intentou uma ação de impugnação judicial do ato de liquidação do imposto, sendo que o TAF de Sintra considerou a ação intempestiva por incumprimento do prazo previsto no art.58º, n.º 1, al. b) do CPTA. Na sequência desta decisão, a Autora veio recorrer jurisdicionalmente a decisão do TAF de Sintra, uma vez que considerava que a ação era tempestiva. Neste sentido, a ora recorrente alegou ter havido violação do direito de participação dos interessados na formação das decisões e deliberações que lhes dizem respeito, nomeadamente através da preterição de audição prévia, em desrespeito do direito constitucionalmente consagrado no art.267º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (CPR).
Ademais, a Autora alega que, uma vez que a omissão de audiência prévia consubstancia uma formalidade manifestamente essencial, a sua preterição deverá conduzir ao vicio da nulidade e não ao da anulabilidade do ato administrativo.
Comentário:
A audiência das partes interessadas, prevista nos artigos 80.º, 100.º e 121.º e ss. do CPA, corresponde à terceira fase do procedimento administrativo, sendo "assegurado aos interessados num procedimento o direito de participarem na formação de decisões que lhes digam respeito", segundo o professor Freitas do Amaral.
Note-se ainda que, segundo o professor Marcelo Rebelo de Sousa, nos termos do art.124º, n.º 1 do CPA, a Administração, atuando discricionariamente, pode dispensar a audiência prévia, atendendo a dois tipos de situações: quando a própria lei entenda que a audiência é desnecessária, ou quando a lei autoriza o instrutor a dispensá-la. Ademais, atentando o princípio da democracia representativa, a decisão final deverá ser acompanhada de fundamentação, existindo sempre a possibilidade de recurso da decisão, caso esta não se mostre satisfatória para os interessados (n.º 2).
O problema jurídico da falta de audiência prévia e consequentes efeitos é uma matéria algo controvertida na nossa doutrina, estando consagradas três correntes diferentes relativas à natureza desta invalidade, que passaremos infra a esclarecer.
A primeira tese adotada pelos professores Sérvulo Correria e Vasco Pereira da Silva, considera que a audiência prévia é um direito fundamental atípico, de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias. Nestes termos, entendem que se deverá aplicar o regime da nulidade (art.162º do CPA e art.17º da CRP), uma vez esta que viola o conteúdo essencial de um direito fundamental.
A segunda tese é defendida pelos professores Freitas do Amaral, João Caupers e Pedro Machete, que consideram que a falta de audiência prévia origina a mera anulabilidade do ato administrativo. Segundo o prof. Freitas do Amaral:
- A falta de audiência prévia não gera nulidade, uma vez que não faria sentido que "no caso mais grave de falta de audiência dos cidadãos, que é a falta de audiência do arguido em processo disciplinar, se adotasse uma sanção menos grave - a da anulabilidade - e que nos outros casos, que apesar de tudo não são tão graves quanto esse, se adotasse a sanção mais grave da nulidade."
- A expressão dos direitos fundamentais apenas abrange os direitos, liberdades e garantia e os direitos de natureza análoga, excluindo-se os direitos económicos, sociais e culturais que não tenham tal natureza, nomeadamente, o direito de audiência (que o Professor caracteriza como um direito subjetivo público de caráter administrativo), uma vez que não está em causa a proteção da dignidade da pessoa humana, a qual é o valor jurídico basilar do conceito de "direito fundamental".
Finalmente, surge uma posição intermédia que tem vindo a ser adotada por alguma jurisprudência, nomeadamente pela decisão do Supremo Tribunal Administrativo sub judice.
A posição adotada pelo STA:
No presente acórdão, o STA adotou uma posição intermédia, ainda que considere que o direito à audiência prévia é um direito fundamental, constitucionalmente consagrado no artigo 267.º, n.º 5 da CRP, entende que só pode haver nulidade quando, no procedimento, esteja em causa o conteúdo essencial de um direito fundamental, tendo em conta o artigo 161.º, n.º 2, al. b) do CPA. Neste sentido, o tribunal entendeu que só ocorrerá "ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental quando o direito afetado fique sem expressão prática apreciável", o que não se verifica quando esteja em causa uma liquidação ilegal, uma vez que esta "apenas atinge limitadamente o direito de propriedade dos seus destinatários, além de que, entre as violações possíveis de direitos por normas tributárias, a sanção mais grave da nulidade, por razões de proporcionalidade, terá de ser reservada para os atos que representam mais graves violações dos direitos tributários".
O Tribunal considerou que o ato era meramente anulável e negou provimento ao recurso, confirmando que a ação não tinha sido tempestivamente interposta, dados os prazos de caducidade aplicados neste contexto (artigo 163.º, n.º 3 do CPA e artigo 58.º, n.º 1, al. b) do CPTA).
Bibliografia:
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