Comentário ao Acórdão de 29 de abril de 2002, processo nº 044744, do STA - Rodrigo Melo da Silva
I - Introdução
O acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29 de abril de 2002, processo nº 044744, declarou a anulação de um ato praticado pela Associação de Municípios do Planalto Beirão, dada a alteração realizada aos prazos limite de apresentação das propostas relativas ao "concurso internacional para adjudicação da prestação de serviços de recolha e transporte e aterro ou estação de transferência dos resíduos sólidos urbanos dos concelhos integrados na Associação de Municípios do Planalto Beirão".
Assim, discutir-se-á, a propósito deste ato, a sua conformidade ao direto (Administrativo e Constitucional), nomeadamente através de matéria relativa a Princípios Constitucionais tratados a nível do Direito que rege o Poder da Administração, dando especial valia ao Princípio da Boa-Fé, (cf. art. 266/2 da CRP).
É uma matéria que apresenta particular interesse dado estar inserida em problema que tange os Princípios, os quais, segundo o critério identificado por Esser, são fórmulas cuja determinalidade se encontra com escasso valor, sendo, por isso, necessário à sua aplicação a intervenção do Legislador ou de um Juiz1.
De facto, a administração é muitas vezes investida pela lei de um vazio de autonomia que em nada se pode configurar como uma abertura a juízos arbitrários, porém sempre (este poder discricionário) regulado pela ordem jurídica. Deve, então, estar inscrito dentro dos vários princípios que refere o artigo 266º da CRP2.
O citado acórdão torna-se pertinente dada a sua expressividade quanto a esta (in)capacidade da administração em regular a validade da sua própria "livre" conduta, ainda que nos termos vagos da lei (o caso dos princípios referidos), apenas preenchidos pelo poder judicial.
II - Factos relevantes à referenciada questão jurídica
No presente acórdão verifica-se um recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, que considerou nulo este ato de alteração de data limite para a apresentação de propostas relativas a este concurso público.
Como conclusões, na alegação de recurso, aparecem as seguintes:
- Por entender que o acto recorrido é válido por não ter violado qualquer norma expressa..
- Por entender que a decisão, por um lado, pôs em causa os princípios da estabilidade e das regras do concurso e da concorrência e, por outro lado, não teve em consideração a aplicação do princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos dos cidadãos e do princípio da proporcionalidade, a que se referem, respectivamente, os artigos 4º e 7º do CPA .
- Por entender que a rectificação ao anúncio do concurso foi emitida para suprir um erro material (não sendo alteração, mas antes reposição- por correção- da verdade), a qual é permitida a todo o tempo, nos termos dos princípios gerais de direito e, no caso concreto, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 174º do CPA.
A sentença sob recurso deu como matéria de facto provada a seguinte:
1º Através de Aviso publicado em D.R., III Série, nº 173, de 27/7/96, a entidade recorrida publicitou um Anúncio atinente a " Concurso Público Internacional para Adjudicação [...] Associação de Municípios do Planalto Beirão ".
2º Através de Aviso, publicado em D.R., III Série, n.º 198, de 27/8/96, a Entidade recorrida publicitou um Anúncio procedendo à retificação do anterior anúncio, dado este ter saído com inexatidão.
5º Em 22 de Julho de 1996, o Conselho de Administração da ora recorrida deliberou delegar poderes nos administradores (que refere) com vista a celebrar os acordos necessários com a Sociedade "...", incluindo um contrato de consórcio, com vista à apresentação de propostas ao "Concurso Público Internacional [...] Associação de Municípios do Planalto Beirão", promovido por esta Associação.
6º Em 3 de Setembro de 1996, foram abertas as propostas apresentadas ao concurso referido, não constando qualquer proposta da ora recorrida.
Com efeito, o STA não determina que à recorrente lhe assiste razão, listando algumas razões que, mais aprofundadamente analisaremos, com base em doutrina.
A administração pública está, pois, obrigada a obedecer à bona fide nas relações com os particulares. Ora, a regra da boa fé (cf. art. 10º CPA) impõe, num concurso público, que a administração respeite as expectativas criadas aos concorrentes pela admissão das suas propostas. Dos três objetivos apontados aos direito, por Fausto de Quadros, aquele que se prende mais com a boa-fé é o da segurança através do princípio da segurança jurídica ou da confiança legítima. Este último é uma regra ético-jurídica fundamentalista que manda assegurar as legítimas expectativas dos cidadãos3.
Foi com a revisão de 1996 que este princípio foi acrescentado ao CPA, consagrado, posteriormente, no art. 266º da CRP. Esta última determina a tutela das situações de confiança tal como assegurar a conformidade material das condutas realizadas aos objetivos propostos4. No Direito Administrativo, a dimensão mais relevante deste Princípio é, efetivamente, a tutela da confiança, a qual salvaguarda os sujeitos jurídicos contra ações injustificadamente imprevisíveis de outrem, apresentando-se em texto legal quer seja no art. 140º, 1, b) do CPA, ou arts. 128º, 2, a) e 145º, 3, b) do CPA5.
A Recorrente, ao alterar a data limite referida no anúncio do concurso público para a apresentação das propostas, viola a boa fé, dado que há frustração da confiança e da estabilidade das regras do concurso, "bem como os princípios da livre concorrência e da transparência, que, por sua vez, como se refere na sentença, são reflexo dos princípios jurídico-constitucionais da justiça, da igualdade e da imparcialidade".
Se a Administração Pública prossegue o interesse público, também é certo que este fim deve estar aliado aos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, normas constantes nos referidos artigos da Constituição e CPA.
A Recorrente afirma que procedeu à alteração do prazo para não se verificar um manifesto atraso ao processo de contratualização, colocando em causa os descritos princípios supra citados. "Sob tal pretexto, os órgãos administrativos poderiam praticar atos ilegais insindicáveis, tese que ninguém defenderá."
Ainda o acórdão refere que "é jurisprudência pacífica que é possível a retificação de atos administrativos desde que se trate de corrigir erros materiais cometidos na expressão da vontade real do autor do ato e que tais erros sejam facilmente detetáveis ou compreensíveis; em suma, sejam evidentes." Embora esta retificação seja possível, não se verifica no caso em exame, uma vez que é "evidente", inequívoco, que o prazo dado em primeira disposição seria o de dia 24 de setembro de 1996. Este não é um erro material.
Tratando da tutela da confiança esta não difere quanto aos pressupostos que se referem na Teoria Geral do Direito Civil, sendo estes:
-A situação de confiança, traduzida na boa fé subjetiva ou ética da pessoa lesada;
-A justificação dessa confiança, ou seja, elementos objetivos que provam a crença;
-O investimento de confiança, que engloba atividades jurídicas prestadas sobre a crença;
-Por fim, a imputação da confiança - um sujeito a quem se depositou a confiança do tutelado6.
Esclarece o Supremo Tribunal de Justiça que "agir consoante as regras de boa fé – art. 266.º, n.º 2, da CRP –, traduz-se no dever de atuar segundo um padrão de lealdade e correção, visando a realização dos interesses legítimos que as partes pretendem obter com o ato. O princípio da boa fé, na vertente da tutela da confiança, pretende consagrar a ideia de previsibilidade e, bem assim, a ideia de não contraditoriedade, no domínio da atividade administrativa"7
III - Conclusão
Certo foi que neste recurso de sentença deu-se a improcedência de todas as conclusões da alegação da Recorrente, estando como núcleo decisor o princípio da boa-fé, destacado no artigo 266º, parte final, da CRP e no corpo do artigo 10º, nºs 1 e 2, do CPA.
Também a decisão do acórdão do STA 6/6/84, determinou nulo o ato administrativo que sancionou um agente por faltas injustificadas ao serviço, tendo este, porém, sido hierarquicamente autorizado a ausentar-se, depositando a sua confiança naquele assentimento de posição superior.
Ressalvar que nem sempre a tutela da confiança determina a invalidade dos atos administrativos, no caso de se tratarem de atos conformes à lei, podendo assim dar lugar à indemnização8.
Diz-nos João Caupers9 que o princípio da boa-fé não apresenta especificidade no que respeita à sua aplicação à Administração Pública, sobressaindo, todavia, dois limites negativos que este coloca à atividade administrativa:
-O de a Administração não atraiçoar a confiança que os particulares interessados depositaram num certo comportamento seu. Não se deve iniciar um procedimento tendente ao recrutamento de agentes para o preenchimento de determinados lugares e mudar de ideias posteriormente;
-Também não deve iniciar o procedimento com um objetivo com o propósito de atingir um objetivo diverso, ainda que de interesse público.
Bibliografia
1. J. Esser. Crundsatz und Norm in der richter Forbildung des Privatrechts 4º ed, 1990. p. 51.
2. Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, II, 4º ed., Almedina, Coimbra, 2018, p. 32.
3. Fausto de Quadros, O concurso público na formação do contrato administrativo, in ROA, 1987, pp. 725 e 726.
4. Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, II, pp. 1234 e ss. e 1252 e ss. Sobre a tutela da confiança no Direito Administrativo
5. Vasco Pereira da Silva, Direito Constitucional e Direito Administrativo Sem Fronteiras, Almedina, coimbra, 2019, p. 166.
6. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Tomo I, 3º ed. Almedina, 2005, p. 409 e ss.
7. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de fevereiro de 2013, processo nº 120/12.9YFLSB
8. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de outubro de 1994
9. João Caupers, Introdução ao Direito Administrativo, 10º ed., Âncora editora, Lisboa, 2009, p. 110.
Rodrigo Melo da Silva, aluno nº 69841, sub-turma B12