Comentário ao acórdão de 21 de Fevereiro de 2024 (Processo 0161/06)- Isis Ferreira
O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA) em análise, de 21 de Fevereiro de 2024, trata de um caso que envolve um contrato de associação entre o A..., LDA. e o Ministério da Educação. O A. foi condenado a repor a quantia ao Estado, em resultado da aplicação indevida de apoios financeiros recebidos ao abrigo do contrato. O interior da questão reside na natureza jurídica da ordem de reposição de quantias, e se esta constitui uma sanção acessória abrangida pela declaração de inconstitucionalidade, ou se se prende com os poderes da Administração em contratos administrativos de associação.
O caso envolve uma escola que recebeu fundos públicos e foi acusada de uso indevido dos mesmos. A decisão original impôs uma multa e a reposição das quantias indevidamente utilizadas, mas foi parcialmente anulada numa instância inferior. O STA, no entanto, mantém a ordem de reposição, argumentando que esta não se configura como sanção, mas sim como exercício do poder da administração pública em contratos administrativos, sendo independente da questão da constitucionalidade da multa. A admissão da revista é considerada excepcional e, neste caso, não se justifica pela falta de relevância jurídica ou social significativa da questão e pela ausência de erros de julgamento na decisão recorrida.
O Acórdão sustenta que a ordem de reposição não é uma sanção acessória, mas sim uma consequência direta do incumprimento contratual e da utilização indevida de verbas públicas. Esta decisão reflete a autonomia da Administração Pública na gestão de contratos administrativos, com base no princípio da legalidade. O STA considerou que a ordem de reposição não configura uma sanção, mas sim uma consequência da utilização indevida de fundos públicos, e portanto, está amparada nos poderes da Administração em relação aos contratos administrativos de associação
Para além disso, sublinha a importância da separação de poderes, distinguindo a atuação administrativa da função jurisdicional. Ao negar o vício de usurpação de poderes, o STA reconhece que a Administração Pública detém poderes próprios para garantir o cumprimento das obrigações contratuais, sem prejuízo da tutela judicial dos direitos dos particulares
O STA, ao decidir que a ordem de reposição tem base legal nos poderes da Administração, faz referência à importância do cumprimento da lei em todas as atuações administrativas, sejam elas atos, contratos, regulamentos, ou mesmo atuações informais. Posto isto, o Acórdão em questão realça a importância do princípio da legalidade na Administração Pública. No caso específico, o STA considerou que a ordem de reposição de quantias, por ter base legal nos poderes conferidos à Administração em matéria de contratos de associação, não viola o princípio da legalidade, este abrange também os poderes discricionários da Administração, mesmo quando a Administração tem margem de decisão, esta deve ser exercida dentro dos limites e parâmetros legais e em conformidade com os princípios gerais do Direito.
Para além disso, o acórdão reconhece a distinção entre as funções administrativa e judicial. Ao afirmar que a ordem de reposição não é uma usurpação do poder judicial, o STA delimita as esferas de atuação de cada poder, reforçando a autonomia da Administração na gestão de contratos administrativos.
O caso em questão envolve um contrato de associação, que se enquadra no âmbito dos contratos administrativos. Estes contratos, apesar de envolverem a Administração Pública, são hoje regulados por um regime comum, o regime de contratação pública, e submetidos à jurisdição dos tribunais administrativos. Como a natureza jurídica do contrato administrativo em Portugal evoluiu para um regime unificado de contratos públicos. Esta mudança, impulsionada pelo Direito da União Europeia, simplificou o regime jurídico e reforçou o controlo da legalidade da contratação pública pelos tribunais administrativos.
Esta perspetiva reflete uma mudança de paradigma no Direito Administrativo Português. O particular deixou de ser visto como um mero "administrado", sujeito ao poder autoritário do Estado, para se afirmar como um verdadeiro sujeito de direito, titular de direitos subjetivos oponíveis à Administração Pública.
Esta evolução teve como base a teoria da norma de proteção, que reconhece direitos subjetivos aos particulares sempre que uma norma jurídica visa proteger os seus interesses. A consagração dos direitos subjetivos públicos e a garantia de tutela jurisdicional efetiva são elementos essenciais para assegurar a justiça e a legalidade da atuação administrativa em um Estado de Direito Democrático
Por fim, o Acórdão do STA suscita a importante questão dos direitos subjetivos dos particulares em face da Administração Pública. A decisão, ao negar a natureza sancionatória da ordem de reposição, implicitamente reconhece a necessidade de proteger os direitos dos particulares, mesmo em casos que envolvem contratos administrativos.
Bibliografia:
FREITAS do AMARAL, Diogo; Curso de Direito Administrativo- Vol.I; Almedina
SÉVULO CORREIO, J.M; PAES MARQUES, Francisco; Noções de Direito Administrativo- Vol.I; Almedina
