Comentário ao Acórdão de 07/04/2022 (Processo nº 03478/14.1BEPRT) do STA- Carolina Mendes
Análise do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (STA)
1. Descrição do Caso em Juízo:
O litígio em questão envolve a atuação do Município do Porto, que, após um incêndio num prédio urbano de propriedade da recorrente, tomou medidas administrativas para garantir a segurança pública (art. 27º CRP).
O incêndio danificou a estrutura do edifício a ponto de gerar risco de colapso, o que motivou o município a ordenar a demolição do prédio, por considerar que a situação representava um perigo para terceiros.
O primeiro despacho, datado de 22 de maio de 2013, autorizou a demolição das estruturas danificadas, enquanto o segundo despacho, em 3 de janeiro de 2014, notificou a recorrente para o pagamento dos custos dessa demolição, no valor de 18.070,93€.
A recorrente questiona a legalidade desses despachos, alegando vícios no procedimento, incluindo a violação do princípio do contraditório, a ausência de notificação para a execução das obras e a falta de competência para a tomada de decisões de tal magnitude. A questão central gira em torno da utilização do estado de necessidade administrativa (art. 3º, nº 2 CPA) como justificação para a execução das obras sem o cumprimento de certos trâmites legais e procedimentais, como a audiência prévia dos interessados (art. 121º CPA).
Este direito está sustentado no artigo 267º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e é o problema em causa no parágrafo 8 do acórdão.
2. Alegações da Recorrente:
A recorrente argumenta que, apesar do contexto de emergência que levou à execução das obras, o município violou princípios fundamentais de direito administrativo, nomeadamente:
- Vício de forma, por não ter dado oportunidade à recorrente de se manifestar antes da tomada de decisão (violação do contraditório);
- Violação de formalidades legais, especialmente nos termos do artigo 91º e 108º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE);
- Violação de um direito fundamental, em razão da ausência de notificação da necessidade de obras e do incêndio (art. 161º, nº 2, alínea d) CPA);
- Falta de competência absoluta, uma vez que a decisão tomada foi, segundo a recorrente, ilegal.
A recorrente questiona também a falta de uma formalização clara da necessidade de execução das obras, considerando que o município poderia ter identificado facilmente o proprietário do edifício através das bases de dados municipais, e deveria ter seguido o procedimento administrativo normal.
3. A Análise da Discricionariedade e do Estado de Necessidade:
No caso em análise, o município justifica sua atuação com base no estado de necessidade administrativa, argumentando que a urgência da situação exigia uma intervenção imediata para evitar danos maiores.
A recorrente, por sua vez, considera que o município se aproveitou da situação para realizar obras extraordinárias sem cumprir as formalidades legais, alegando uma atuação arbitrária da administração pública.
O estado de necessidade, como conceito jurídico, permite que a administração pública se sobreponha temporariamente a certos procedimentos administrativos em situações excepcionais, para garantir a segurança pública e o cumprimento do interesse público.
No entanto, a atuação da administração deve sempre observar os limites da proporcionalidade, ou seja, as ações providenciadas devem ser adequadas, necessárias e proporcionais ao fim visado.
A jurisprudência e a doutrina indicam que, em casos de estado de necessidade, é possível dispensar certos procedimentos, como a audiência prévia, se a urgência justificar a ação imediata.
No entanto, a necessidade de agir sem cumprir as formalidades legais deve ser devidamente justificada, e a atuação da administração deve ser devidamente fundamentada para garantir que não se tenha ultrapassado o limite da discricionariedade administrativa.
4. A Decisão do Tribunal:
O Supremo Tribunal Administrativo (STA) decidiu, em conformidade com a argumentação da recorrente, que houve violação do direito à audiência prévia, conforme disposto no artigo 267º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP). O tribunal considera que, apesar da alegada urgência, a ausência de notificação à recorrente configura uma falha procedimental que resultou em nulidade do ato administrativo.
Em relação ao estado de necessidade, o tribunal também reconheceu que, embora a administração pública tenha o direito de agir em situações de emergência, a justificação da necessidade de urgência e a proporcionalidade da atuação não foram devidamente fundamentadas. A falta de clareza sobre os motivos que justificariam a urgência das obras e a duração das intervenções implicou uma falha na aplicação da figura do estado de necessidade.
5. Considerações Críticas ao Acórdão:
A análise crítica do acórdão aponta para dois problemas centrais:
1. A Justificação da Urgência: O tribunal não questiona diretamente a urgência da intervenção, mas destaca a falta de fundamentação quanto à necessidade de realizar as obras dentro de um prazo tão curto (30 dias). Para que o município tivesse demonstrado a existência de um estado de necessidade, seria necessário justificar, de forma detalhada, a necessidade das obras e o risco iminente que a situação representava. A simples alegação de urgência não é suficiente para afastar as formalidades legais, sem que se apresentem elementos concretos que comprovem a existência de um risco imediato.
2. O Direito à Audiência Prévia: A violação do direito à audiência prévia é um ponto delicado. Embora o artigo 124º, nº 1, alínea a) do Código de Procedimento Administrativo (CPA) dispense a audiência em casos de urgência, a decisão de não ouvir a parte interessada deve ser extremamente bem fundamentada. A falha do município em justificar adequadamente a urgência compromete a transparência do processo e o respeito pelos direitos da recorrente. A jurisprudência atual reconhece que a ausência de audiência prévia pode ser aceitável em situações excepcionais, mas o município deveria ter apresentado uma justificação convincente da urgência, para evitar que os direitos da recorrente fossem desconsiderados.
6. Conclusão:
O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo reforça a importância do respeito aos direitos processuais dos cidadãos, mesmo em situações de emergência. Embora a administração pública tenha o poder de agir em estado de necessidade, a sua atuação deve ser justificada de forma clara e proporcional, de modo a evitar abusos ou violações de direitos fundamentais. A decisão do tribunal, ao considerar nulo o ato administrativo, demonstra que, mesmo em situações excepcionais, a administração deve assegurar a transparência e a legalidade nos seus procedimentos, incluindo a garantia do contraditório e a fundamentação adequada para a dispensa de formalidades.
Sérvulo Correia, Escritos de Direito Público, Vol I Almedina, 2019.
Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol II, 2018.
Paulo Otero, Direito do procedimento administrativo, Vol I, Almedina, 2016.
Carolina Mendes (nº 69527)