Comentário ao Acórdão 097/08 de 24/04/2008 do STA- Diana Magno da Costa

27-11-2024

Análise Crítica do Acórdão 097/08 de 24/04/2008 do Supremo Tribunal Administrativo

Contexto Jurídico e Factual- Enquadramento Jurídico:

O acórdão em análise transcende a mera análise técnica e levanta questões fundamentais sobre a responsabilidade civil médica e os desafios administrativos em serviços de saúde públicos. A decisão insere-se num contexto onde a responsabilização extracontratual do Estado deve ser equilibrada entre a justiça às vítimas e a preservação do interesse público, expondo, no caso concreto, deficiências sistémicas na prática hospitalar e no acompanhamento judicial.

A ação foi instaurada ao abrigo do Decreto-Lei n.º 48051, de 21 de novembro de 1967, que regula a responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas. Segundo os artigos 483.º e 563.º do Código Civil (CC), a responsabilidade exige cumulativamente: facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade adequada.

No caso, o hospital foi acusado de violar as legis artis na assistência ao parto, optando por um parto vaginal (eutócico) ao invés de cesariana, apesar da apresentação pélvica "modo pés" do feto.

As leges artis, quando não escritas, são métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de atuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica, como os mais adequados e eficazes.

Um caso de Responsabilidade Civil ou um falhanço estrutural administrativo?

A condenação do hospital réu fundamentou-se em falhas técnicas que, à primeira vista, configuram negligência médica — ausência de partograma, falta de monitorização contínua e escolha errada do parto vaginal em apresentação pélvica. No entanto, um olhar crítico aponta que este caso transcende a atuação isolada dos profissionais envolvidos, refletindo problemas estruturais no sistema de saúde pública.

A ausência de registos clínicos essenciais não é apenas uma falha técnica; é sintomática de deficiências administrativas que comprometem tanto a segurança do paciente quanto a defesa jurídica das instituições. Este ponto é agravado pela inexistência de protocolos claros e pela gestão inadequada de recursos humanos e materiais, evidenciando uma lacuna sistémica que potencializa o risco de litígios.

A questão do Dano: Responsabilidade Jurídica ou Administrativa?

O tribunal aplicou corretamente os critérios do art. 563.º do Código Civil, usando a doutrina da causalidade adequada de Almeida Costa para vincular as lesões do menor à conduta médica, aplicando esta teoria na formulação negativa de Ennecerus-Lehmann, para determinar o nexo de causalidade.

No entanto, ao focar-se exclusivamente na responsabilidade médica, o acórdão parece ignorar uma questão crucial: até que ponto o hospital, enquanto entidade pública, é funcionalmente capaz de evitar tais ocorrências?

Se o sistema de saúde falha em oferecer formação contínua, supervisão e protocolos claros, a culpa jurídica atribuída aos agentes pode mascarar uma responsabilidade maior: a do Estado na organização e gestão eficiente do serviço público. Este caso, embora decidido sob a ótica da responsabilidade civil, deveria também questionar o papel do Estado em garantir um ambiente institucional que previna práticas inadequadas.

A Revisão Parcial e o Dilema da Equidade:

A decisão de anular parcialmente a sentença para melhor apurar os danos futuros da mãe do menor é juridicamente prudente, mas revela um dilema: como conciliar a necessidade de justiça específica com a morosidade e os custos adicionais que a revisão implica? Ao recorrer ao art. 566.º do CC para fundamentar a liquidação equitativa dos danos, o tribunal segue a tradição jurisprudencial. Já relativamente aos juros moratórios, o artigo 805.º, n.º 3, do CC foi considerado adequadamente aplicado, salvo quanto a danos futuros.

No entanto, este mecanismo, longe de ser uma solução ideal, expõe as dificuldades práticas em quantificar danos em contextos de incerteza. O caso sugere a necessidade de debates mais amplos sobre metodologias para avaliar danos futuros e definir critérios uniformes, evitando que a litigância administrativa dependa exclusivamente do caso concreto, o que gera incertezas tanto para os autores quanto para as instituições.

Reflexão Crítica:

O acórdão destaca que, num Estado de Direito, as decisões judiciais em matéria de responsabilidade civil não podem limitar-se à aplicação formal de princípios jurídicos. É imperativo que essas decisões considerem o impacto mais amplo das deficiências administrativas e organizacionais. No caso em análise, a condenação do hospital — justa nos termos legais — não resolve a questão de fundo: como assegurar que o sistema de saúde público não esteja intrinsecamente desenhado para falhar?

Além disso, a condenação de entidades públicas em casos como este evidencia a dificuldade de equilibrar o direito à compensação dos lesados com a preservação da sustentabilidade financeira e funcional dos serviços públicos. Uma abordagem mais crítica deveria interrogar a eficácia das atuais práticas hospitalares, propondo reformas que transcendam a lógica reativa dos litígios e priorizem a prevenção.

Conclusão:

O acórdão combina uma análise técnica e jurídica rigorosa, reconhecendo a responsabilidade civil do hospital com base nas falhas administrativas e na violação das legis artis. A decisão do Supremo Tribunal Administrativo, ao anular parcialmente a sentença e remeter matérias para nova avaliação, evidencia o equilíbrio necessário entre proteger os direitos dos lesados e assegurar a justiça na apuração de factos.

Do ponto de vista jurídico, o caso reafirma os critérios exigidos para a responsabilidade extracontratual de entidades públicas, incluindo a importância da causalidade adequada e da fixação equitativa de indemnizações. Administrativamente, sublinha a necessidade de fortalecer protocolos clínicos, registros hospitalares e práticas de gestão de risco para prevenir futuras ocorrências e mitigar o impacto de litígios no sistema de saúde público.

Este acórdão não é apenas um caso de responsabilidade civil; é um reflexo das tensões entre a teoria jurídica e a realidade administrativa. Ele ensina que a resolução de litígios médicos em contextos públicos deve ser acompanhada de reformas organizacionais profundas. Sem estas, decisões judiciais como esta continuarão a tratar os sintomas, deixando a verdadeira doença administrativa intocada. 


Diana Magno da Costa, nº 69868

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