Comentário Acórdão STA 0299/16 - Madalena Gomes

16-11-2024

Comentário ao Acordão 0299/16 do Supremo Tribunal Administrativo, de 14/09/2016

Descrição do Caso em juízo:

No acordão sub iudice a Fazenda Pública recorreu da Decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, o qual havia condenado a admnistração tributária ao pagamento de juros indemnizatórios a favor da sociedade impugnante devido à anulação de um ato de liquidação de IRC de 2008.

O recurso questiona, portanto, a interpretação do art.43.º da Lei Geral Tributária (LGT) relativamente à aplicação de juros indemnizatórios, alegando que a admnistração tributária não poderia ter agido de maneira diversa, na medida em que a inconstitucionalidade da norma aplicável foi apenas declarada em momento posterior pelo Tribunal Consituticonal.

Consequentemente, aquilo que me proponho a discutir no âmbito desta decisão é a competência administrativa para rejeitar e, como tal, desaplicar normas inconstitucionais.

O QUE AO DIREITO DIZ RESPEITO :

A primeira questão que cabe fazer a priori é se o titular de um orgão administrativo tem o poder de formular um juízo de inconstitucionalidade relativamente às normas que é chamado a aplicar.

Logo à partida, este é um tópico controverso.

A favor dessa competência administrativa tenham-se em conta os seguintes argumentos:

  • A CRP, de maneira implícita, reconhece a atribuição de examinar a constitucionalidade aos orgãos administrativos que estão habilitados a iniciar processos de fiscalização abstrata da constitucionalidade (art. 278.º/4; art.281.º/2 c); art. 280.º/3; art.282.º/2 e) e g)).
  • O Procurador-Geral da República tem a responsabilidade de assegurar a legalidade democrática, devendo considerar as questões levantadas por outros orgãos administrativos (art.220,º/2 CRP)
  • O requerimento de fiscalização de constitucionalidade deve ser adequadamente fundamentado, indicando as normas supostamente violadas. Assim, é legítimo atribuir aos órgãos mencionados nas disposições constitucionais a competência para esse exame (art. 51.º/1 da Lei de Organização e Funcionamento do TC)
  • A constituição sugere ainda a possibilidade de o subalterno[1] examinar a legalidade dos comandos hierárquicos superiores, na medida em que prevê a cessação do dever de obediência hierárquica em situações em que o cumprimento resulte na prática de um crime (art.271.º/3 CRP)
  • O princípio da constitucionalidade da Administração estabelece que existe uma competência administrativa para avaliar a conformidade das normas legais com a Constituição, (art 3.º/1; art.18.º/1; art. 266.º/2 CRP).
  • A competência administrativa de exame deriva do princípio da interpretação das normas legais de acordo com a Constituição.

De outro modo, não deixam de existir relevantes argumentos contra o reconhecimento desta competência:

  • A segurança jurídica seria colocada em causa se fosse de admitir o exame administrativo de normas legais
  • A presunção de não inconstitucionalidade das leis ordinárias só poderá ser afastada pelos tribunais
  • A admissão de uma competência administrativa de exame consubstancia uma viola o princípio da sepração de poderes, já que: (a) o poder executivo estaria a examinar a constitucionalidade das leis, controlando o legislador; (b) estar-se-ia a com prometer o monopólio judicial do exame de constitucionalidade das leis.
  • O princípio da legalidade da Administração seria violado, já que este impõe à Administração o cumprimento primordial da lei ordinária e não da Constituição.

Naquilo a que à desaplicação de normas inconstitucionais diz respeito, é também possível identificar posições contrárias e sustentadas quanto à sua admissibilidade.

Contra esta possibilidade:

  • O ato de rejeitar administrativamente normas consideradas inconstitucionais pode ser visto como uma violação do princípio da sepração de poderes. Se é verdade que isso implicaria permitir que o poder executivo exercesse controlo sobre o legislativo, também o é que ao se admitir a supremacia do principio da relação ao principio da legalidade nas ações administrativas, estar-se-ia a conceder à Administração a liberdade de agir fora dos limites da lei, comprometendo assim o princípio da estreita legalidade administrativa

  • A competência admnistrativa para desaplicar leis colidiria com o dever de obediência hierárquica, constitucionalmente assegurado por interpretação inversa do art. 271.º/ 2 e 3 CRP. Este dever exige, então, que os órgãos administrativos sigam as normas legais, mesmo que sejam inconstitucionais, visto que o ato de promulgar uma lei implica um comando direto à Administração

  • Comprometeria a segurança e a previsibilidade jurídicas, já que apenas os tribunais têm competência para controlar a constitucionalidade das leis

  • Tendo em consideração o pressuposto da constitucionalidade das leis, a Admninistração não pode levantar dúvidas válidas quanto à inconstitucionalidade das normas, mesmo em matérias relativas a direitos, liberdades e garantias.

  • Indo na esteira de uma corrente minoritária, o efeito jurídico de uma lei inconstitucional é a anulabilidadde e os órgãos administrativos estão sujeitos à aplicação destas normas inconstitucionais até ao momento da declaração de inconstitucionalidade.

É possível individualizar dois grupos de argumentos essenciais a favor da competência administrativa de rejeição de leis constitucionais: (a) o princípio da constitucional da ação do Estado e (b) a vinculação administrativa aos direitos, liberdades e garantias.

O princípio da constitucionalidade está positivado no art. 3.º/ 2 e 3 CRP. Desta maneira, o princípio da constitucionalidade da Administração, de acordo com o qual toda a atividade admnistrativa se encontra subordinado à Constituição e à lei está consagrado na primeira parte do art. 266.º/2 CRP. Quer isto dizer que decorre do princípio da constitucionalidade da ação do Estado que a validade de cada ato administrativo não pode conflituar, pelo seu conteúdo, com qualquer princípio ou norma constitucional. Ensina, assim, o professor Rui Medeiros que as autoridades administrativas terão de contribuir ativamente obra a concretização das normas da Lei Fundamental[2].

Resulta ainda da força constitucional que todas as entidades públicas estão vinculadas às normas constitucionais de direitos, liberdades e garantias, conforme o previsto no art. 18.º/1 CRP.

Com efeito, a regra da aplicabilidade direta dos preceitos constitucionais relativos a direitos, liberdades e garantias implica que essas mesmas normas possuam eficácia imediata e independem de qualquer desenvolvimento adicional pelo legislador, vinculando diretamente todos os orgãos e agentes administrativos e sendo automaticamente aplicáveis a todos os seus destinatários normativos. Isto é, quando se trata de uma norma legal ou regulamentar que claramente viole uma norma constitucional relacionada com os direitos fundamentais, a Admnistração é obrigada a desaplicá-la em virtude desse mesmo princípios.

Numa palavra, a conjugação destes dois princípios apontam no sentido da admissão de uma competência de desaplicação de normas inconstitucionais por parte da Administração.

CONCLUSÃO:

A discussão até aqui apresentada expõe a tensão entre o princípio da constitucionalidade e o princípio da legalidade, aos quais a Administração se encontra simultaneamente vinculada.

Não há, como já se viu, consenso sobre a admissibilidade da competência admnistrativa em causa. É certo, no entanto, que a corrente doutrinária maioritária, composta por autores como JORGE MIRANDA, GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA E VIEIRA DE ANDRADE, sustenta, que a administração não deve ter como regra geral o poder de desaplicar normas inconstitucionais, embora não sejam de excluir a possibilidade de existirem soluções intermediárias em situações excepcionais.

A tese clássica em Portugal sustenta desta maneira que "O princípio básico é o de recusar à admnistração em geral e aos agentes administrativos em particular qualquer poder de controlo da constitucionalidade das leis, mesmo se dessa aplicação resultar a violação dos direitos fundamentais"[3].

Utilizando as palavras do professor CARLOS BLANCO MORAIS[4], a favor da existência de como regra geral da indadmissibilidade da fiscalização da constitucionalidade das leis pela Admnistração, o princípio da constitucionalidade nunca está verdadeiramente enfraquecido em face da preferência aplicativa do princípio da legalidade administrativa. Isto porque a supremacia da Constituição é sempre garantida pelos órgãos que, segundo a própria lei fundamental, têm competência para assegurar a sua primazia em caso de conflitos normativos, isto é, os tribunais e, em última análise, o Tribunal Constitucional.

Como tal, mesmo que se possa vir a admitir uma solução intermédia que entenda por conceder à Admnistração a prerrogativa de desobedecer a uma norma por considerá-la inconstitucional, parece que esta possibilidade só será atendível em circunstância de evidente violação de direitos, liberdades e garantias, dado o seu valor fundamental e a proteção redobrado que a CRP lhes confere. Assim, no acordão sub iudice, ao estarem em causa normas que, no máximo, seriam contrárias ao princípio da não retroatividade em matéria fiscal, tal violação manifesta não se verifica, por comprometer, não direitos fundamentais, ,mas antes um principio constitucional.

Ora, resta apenas acompanhar a decisão do STA no acordão em análise, na medida em que, só seria de abandonar a posição maioritária se, num caso excecional, a aplicação de determinada norma violasse matéria referente a direitos, liberdades e garantias: um entendimento diferente seria sinónimo de fatalmente comprometer a segurança jurídica e de promover uma total anarquia na aplicação das leis.


[1] Por subalterno tenha-se aquele sujeito a poderes de um superior hierárquico.

[2] Cfr. RUI MEDEIROS, A Decisão de Inconstitucionalidade Os autores, o conteúdo e os efeitos da Decisão de Inconstitucionalidade da Lei, Universidade Católica Editora, 1999, pp. 168 e 16

[3] GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria, 7.ª edição, páginas 443 e segs.

[4] Cfr. CARLOS BLANCO MORAIS, Justiça Constituiconal, I, 2.ª edição, página 356.

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