Comentário Acordão STA- (Proc.03319/22.6BELSB) - Carlota Marques
A questão principal no caso em análise, e que se tornou o cerne da controvérsia, é se o pedido de proteção internacional feito pelo requerente em Portugal deveria ser considerado um pedido subsequente, conforme o artigo 33.º da Lei do Asilo, e, consequentemente, qual Estado-Membro seria o responsável pela sua análise. A entidade demandada inicialmente considerou o pedido inadmissível, alegando que o requerente já havia solicitado proteção internacional na Alemanha em 2015, o que, de acordo com as regras do Regulamento (UE) 604/2013 (Regulamento de Dublin III), tornaria a Alemanha o Estado-Membro competente. A primeira instância alinhou-se a essa visão, argumentando que o requerente não havia apresentado novos elementos que justificassem um pedido subsequente.
O Pedido Subsequente e a Reversão da Decisão
No entanto, o acórdão recorrido divergiu dessa interpretação, entendendo que o requerente havia invocado novos elementos – como mudanças na situação do seu país de origem e fatos relacionados a um programa alemão – que justificariam a análise do pedido como subsequente. Essa decisão implicaria a não aplicação da regra de inadmissibilidade prevista na Lei do Asilo. Contudo, a qualificação do pedido como subsequente foi contestada, com o Tribunal a salientar, com base na jurisprudência do TJUE, que a responsabilidade de apresentar novos elementos recai sobre o requerente, não cabendo à entidade responsável investigá-los oficiosamente. O Tribunal concluiu que, no caso, o requerente não havia efetivamente apresentado factos ou provas novas que justificassem a qualificação do pedido como subsequente. Adicionalmente, considerou que a Entidade Demandada não seria competente para analisar um pedido subsequente, pois a responsabilidade, segundo o Regulamento (UE) 604/2013, caberia ao Estado-Membro responsável. A decisão do acórdão recorrido foi, portanto, revertida.
Surpreendentemente, apesar da fundamentação inicial do Tribunal, a decisão final do acórdão foi no sentido de aceitar o recurso do requerente, anulando a decisão anterior e mantendo a do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa. Essa reviravolta baseou-se no entendimento de que o pedido do requerente deveria, de facto, ser tratado como um pedido subsequente, uma vez que ele apresentou novos elementos. Uma juíza, em voto de vencido, destacou que, dado o requerente ter uma ordem de expulsão pendente na Alemanha, o Estado português deveria analisar o pedido, em respeito ao Princípio do Non-Refoulement (não devolução).
O pedido subsequente, neste contexto, refere-se a um novo pedido de proteção internacional apresentado por um requerente que já teve um pedido anterior rejeitado ou considerado inadmissível. A sua admissibilidade é condicionada à apresentação de novos elementos de prova, mudanças nas circunstâncias do país de origem ou alterações na situação pessoal do requerente, que não eram conhecidos ou não estavam disponíveis no momento do pedido inicial. O objetivo é que as autoridades reavaliem se esses novos fatores justificam uma nova análise do pedido de asilo, permitindo ou não o reconhecimento do direito à proteção internacional. No direito administrativo em geral, um pedido subsequente é uma solicitação feita após uma decisão administrativa, visando a sua revisão ou modificação com base em novos elementos ou mudanças nas circunstâncias, como novas provas ou fatos desconhecidos.
O Asilo e o Princípio da Legalidade: Fundamentos Essenciais
O Direito de Asilo é um direito fundamental em Portugal, consagrado no artigo 33.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Ele garante a proteção a estrangeiros que se encontrem em situação de perseguição no seu país de origem por motivos políticos, raciais, religiosos ou outros, assegurando-lhes refúgio e proteção contra a expulsão para um local onde a sua vida ou liberdade possa estar em risco. A CRP, nesse sentido, reforça o princípio da proteção dos direitos humanos, estabelecendo que ninguém pode ser expulso, extraditado ou enviado para um território onde a sua integridade física ou moral esteja ameaçada.
O Princípio da Legalidade no direito administrativo é outro pilar essencial, estabelecendo que a Administração Pública só pode agir conforme o que está previsto na lei. Isso significa que todos os seus atos, desde a criação de normas até a execução de decisões, devem ter base legal. O objetivo é garantir que o poder público atue de forma transparente, imparcial e previsível, respeitando os direitos dos cidadãos e evitando abusos. Este princípio está expressamente previsto no artigo 266.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e no artigo 3.º, n.º 1 do Código de Processo Administrativo (CPA).
A Relação entre o Princípio da Legalidade e a Resolução do Caso
O acórdão em questão espelha um cenário típico do direito administrativo, onde o Princípio da Legalidade desempenha um papel central na análise da atuação da Administração Pública. A Administração Portuguesa estava obrigada a aplicar as disposições do Regulamento de Dublin, mas também as obrigações decorrentes de outros regimes legais e constitucionais, como o direito à proteção internacional estabelecido pela Constituição e pelo direito europeu e internacional. A questão central residia na alegação de que o requerente não deveria ser remetido à Alemanha, devido a uma possível ordem de expulsão pendente naquele país, o que poderia colocar em risco o Princípio do Non-Refoulement.
A aplicação do Princípio da Legalidade neste caso demonstra que a legalidade não se limita a seguir as normas de procedimento de um regulamento específico, mas também implica a análise das circunstâncias do caso concreto, considerando as garantias fundamentais do requerente, como a proteção contra a expulsão para países onde a sua vida ou integridade física esteja em risco. Este tipo de situação reflete a complexidade da Administração Pública no âmbito do direito administrativo, onde a atuação administrativa precisa de estar em consonância não só com a legalidade formal, mas também com o respeito pelas normas de direitos humanos e pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos. Assim, a decisão do Tribunal em conceder provimento ao recurso e reverter a decisão anterior reflete a necessidade de subordinação da Administração à lei, incluindo a aplicação de princípios universais e a ponderação de fatores que transcendem a mera aplicação literal da legislação, mas que são cruciais para garantir uma interpretação extensiva das normas jurídicas, com vistas à proteção de direitos fundamentais.
No acórdão, a discussão também envolve a análise do conceito de "fato novo" que poderia justificar um pedido de proteção subsequente. A Administração Portuguesa, ao avaliar o caso, deveria ter considerado este fator, conforme estipulado pela legislação, e não simplesmente aplicar as regras de Dublin de forma mecânica, desconsiderando as novas circunstâncias apresentadas pelo requerente. Este ponto reforça a ideia de que a legalidade não se resume a uma simples obediência à letra da lei, mas implica também uma interpretação que garanta a justiça e a proteção dos direitos humanos. Este raciocínio está em consonância com a interpretação atual do Princípio da Legalidade no direito administrativo, que, no contexto do Estado Social de Direito, exige uma atuação da Administração que observe não só a lei positiva, mas também os direitos fundamentais e a proteção da dignidade humana.
Conclusão: A Relevância do Princípio da Legalidade
A resolução do caso em questão demonstra a fundamental importância do Princípio da Legalidade no direito administrativo. Não se trata apenas de uma adesão formal às normas, mas de uma interpretação ampla que assegura a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos. A decisão do Tribunal, ao reconhecer o pedido do requerente como subsequente e determinar a sua análise, mesmo diante das complexidades do Regulamento de Dublin, ilustra como a Administração Pública deve atuar dentro dos limites da lei, mas também de acordo com os princípios constitucionais e o direito internacional, especialmente no que diz respeito à proteção da dignidade humana e ao direito de asilo. Este caso reitera que a legalidade, na sua aceção mais completa, exige que a atuação administrativa não seja arbitrária, mas sim orientada pela procura da justiça salvaguardando dos direitos dos indivíduos.